AINDA BEM QUE ELES NÃO TINHAM FACEBOOK
O ultimo post aqui publicado data de quatro meses. Amigos fãs do que escrevo e eu mesmo temos feito a pergunta: o que se passa? Tento responder mencionando o baixo retorno; trata-se de uma atividade diletante, que envolve um desafio que, por certo, dá prazer – encontrar as ideias e as palavras, promovendo um seu encaixe mais ou menos justo – mas que depende também de um outro, um receptor que julgará ou, ao menos, reagirá ao que é proposto. Isso ocorre, mas de forma mais tímida do que nós do lado de cá – esse conjunto de olhos, ouvidos, dedos, boca, nariz, neurônios e tudo o mais a que dou o nome de “eu” – às vezes gostaríamos.
Mas há também, é claro, um outro elemento: tudo aquilo que temos vivido nos últimos anos e meses relativo a quem nos governa e como governa. Discórdia. Diante dela, tudo parece ser menor; quem vai querer se dar ao trabalho de ler uma crítica sobre esse ou aquele filme quando há aquilo, aquilo!, a ser resolvido; quem há de sequer – é o que me parece – ter vontade de ir ver um filme no cinema? E, por cima, tendo o agravante de que o autor, seja da crítica, seja da obra criticada, já manifestou ser defensor dessa ou daquela posição, contrária à que se possui e que já foi igualmente expressa em público, nesse outro debate. Está mais difícil escrever, não há dúvida!
Dizer coisas significativas requer algo como subir numa escada pra dar uma olhada em volta e, de lá, soltar o verbo, adentrar as ditas conjunções. Quando o ambiente – discursivo, o que envolve tanta coisa, passando pela identidade e as emoções de cada um – se adensa, concluo, fica mais difícil andar com um tal recurso a tiracolo. A escada não encontra espaço pra fazer a sua ascensão. E as pessoas que sempre ajudam a mantê-la em pé parecem estar ocupadas demais – ou com restrições/desconfianças demais.
Porém, eis que aprofundando minha meditação sobre o primeiro desses empecilhos acima – o “parco” retorno do leitor –, me vem à mente aqueles amigos que tive a oportunidade de fazer por meio daquilo que aqui escrevo. Diante deles, cabe a pergunta: como assim “baixo retorno”? O quê de melhor haveria eu de esperar de uma atividade do que o fato de ela ser fonte virtual de conhecimento de pessoas com preocupações, angústias, pontos de vista (nem sempre) – aquilo tudo que entra na composição do que se costuma chamar amigo – em comum?
Já em relação ao problema da “escada”, ocorre que sempre vai ter obras – sejam elas da “arte” que forem, inclusive daquela, coletiva, conhecida por “política” – que ensejarão, aos que se mantiverem atentos, isso que faz com que queiramos dizer viva! O cinema, para mim, é um hábito que mantém presente essa sede, isso que se assemelha – já que o tema da “escada”, metáfora pra tanta coisa, acabou entrando inesperadamente – ao tesão.
Dito isso, voltemos ao hábito da escrita sobre cinema e etc., abordando o último filme de Aleksander Sokurov, Francofonia: Louvre sob ocupação. Grande filme sob o aspecto estético. Esse mestre russo que já havia tido a intrepidez de nos trazer, ficcionalizados mas não muito, os ocasos de um Hitler no seu bunker (Moloch), de um Lenin na gelada dacha que Stalin lhe reservou (Taurus) e de um imperador Hirohito com os americanos batendo à sua porta depois de terem soltado as duas bombas (O Sol) – para não falar do seu último, Fausto, personagem nevrálgico (e em permanente ocaso) da literatura ocidental – desta feita nos entrega a história desse museu ícone (não tem como fugir dessa palavra na moda), no momento em que, na Segunda Guerra, a França se viu ocupada pela Alemanha – ou seja, uma nova queda que poderia ter ocorrido, mas não ocorreu.
Como disse, o filme é um primor em termos daquilo que, na pintura, se costuma chamar de “fatura”: de base eminentemente documental (faz uso de imagens de arquivo), não abre mão de ficcionalizar situações (ou seja, empregando atores vivendo personagens específicos da época), só que dando-lhes uma pátina envelhecida, para aparentar serem, também, de arquivo. Há um narrador, o próprio Sokurov, que, por vezes, aparece em seu gabinete a se comunicar, via computador, ao mesmo tempo em que trabalha na confecção do filme que vemos, com um amigo capitão de um navio a transportar, em meio a uma tempestade, uma carga de valor artístico.
O protagonista, sem dúvida, é o imponente museu – assim como ocorre nesse outro incrível Arca Russa, de sua autoria, filmado num único plano sequência no Museu Hermitage de São Petersburgo – e aquilo que ele hospeda. Como a arte se relaciona com o poder? Eis o tema; e a resposta, que vem na voz do narrador: um pouco como o navio que a carrega se relaciona com o mar e suas ondas, como se lhe causasse, em certos momentos, um incômodo.
Mas se fosse só isso, seria pouco para Sokurov. O documental é mera base para o espiritual, o verdadeiro ponto que lhe interessa (refiro-me, aqui, à sua filmografia). Daí a importância da reconstrução por meio de atores, cenário, etc. O filme também tem como protagonistas um oficial nazista, o Conde Metternich, e o diretor do Louvre à época, o “republicano” Jacques Jaujard. “O senhor é o primeiro servidor público que encontro, desde que cheguei, ocupando o seu posto”, são as palavras iniciais que o primeiro dirige ao segundo, não deixando de ser elogiosas, posto carregarem consigo a observação de que os demais parecem ter abandonado, simplesmente, os seus. A despeito do difícil da situação, ambos acabam mantendo uma sintonia, estabelecendo entre si um respeito mútuo. Metternich nutria pela arte a mesma paixão que Jaujard e acabou fazendo vistas grossas quando se deparou com tudo o que havia sido escondido, do Louvre, nos castelos nos arredores de Paris. O aristocrata, com a faca e o queijo na mão, se rendeu frente à dignidade do servidor público responsável e acuado.
Eu confesso que sou um pouco como Sokurov: relatar filmes, pra mim, não basta, é pouco. Aqueles que frequentam este blog já se deram conta que eu sempre aproveito esse material, os filmes que vejo, para refletir sobre outras coisas acontecendo em paralelo. Não será diferente agora: penso que Francofonia consiste para nós, brasileiros, vivendo tudo o que temos vivido – em especial na semana que ora acaba – numa oportunidade para a reflexão sobre o nosso momento. Explico.
Tenho (quem não) lido e ouvido queixas de que o o governo que se instaura – o de Michel Temer – tem as características – e, por vezes, as proporções – de uma ditadura, algo intolerável. Falam alguns, diante disso, em resistência, ao passo que, outros, em “exílio”. Não me cabe aqui concordar ou não com esse diagnóstico. Aliás, não concordo, de maneira alguma, com ele, mas isso não é, para o que aqui me interessa, relevante. É ditadura, não é… É o fim dos tempos, ou não…: não importa, aqui, neste momento. O que eu coloco aqui, agora, a partir do que pode ser visto nesse filme de Sokurov, é um questionamento a respeito dessa atitude de repúdio absoluto, visceral, ao que não tem mais volta. É, de fato, pergunto-me, a opção mais interessante? Se, de verdade, são canalhas, canalhas!, todos esses que farão parte do governo daqui em diante, não cabe que sejam combatidos dentro da estrita convivência que faz uso da razão e dos argumentos, diários, ao invés de através dessa atitude denegante e peremptória? Não cabe a defesa do que existe, do que foi, com esforço, construído – as instituições, revistam-se elas de um caráter ora mais democrático, ora mais republicano –, ao invés do seu franco e definitivo abandono aos “leões”?