Aquarius, de Kleber Mendonça Filho

TUDO ÀS CLARAS

Ontem, finalmente, fui ver Aquarius, o mais recente filme de Kleber Mendonça Filho. Não tem muito tempo que esse filme estreou; como explicar, então, o “finalmente” da oração inicial? Bem, como quase todos sabem, esse longa pernambucano tem provocado uma corrida aos cinemas por parte de todos aqueles que se sentem vilipendiados pelo impeachment de Dilma Rousseff. O estopim desse fenômeno foi a estreia que o filme teve no último Festival de Cannes, quando o seu elenco e equipe se apresentaram nas escadarias do cinema onde o filme iria ser projetado portando cartazes contra o “golpe” que estaria sendo perpetrado no Brasil naquele instante. Deu na imprensa mundial, como tudo o que ocorre de diferente naquela escadaria de gala. Por aqui, foi algo a se somar às variadas manifestações de artistas a favor da ex-presidente.

Sendo eu favorável ao impeachment, não aderi à corrida desenfreada. Mas, também, sendo favorável ao bom cinema, como deixar de ver o filme seguinte a O som ao redor, que eu adorei? Separemos as coisas, ainda que a prática, aqui, tenha sido sempre a de misturar – como, creio, haverá de acontecer mais pro final desta crônica – e iniciemos dizendo que o filme tem enormes méritos: quem ainda não tenha ido, vale a pena ir ver. E, à fervorosa legião que já foi, cumprindo ou não aquilo que se tornou quase um dever cívico, pode ser que interesse o que tenho a dizer.

Mendonça Filho confirma-se como mestre nesse seu segundo (ao menos do meu conhecimento) longa. Assim como O som…, Aquarius ressoa na nossa cabeça por um longo tempo. Acordamos, no dia seguinte, com suas cenas em nós: vamos fazer o café e lá estamos próximos ou distantes da protagonista, Clara, vivida por Sônia Braga, com a sua presença nos inquirir sobre o quanto há de liberdade em nossas vidas, em nossos gestos, os mais cotidianos. Daqui de onde escrevo, a seca (nesta época) Brasília, parece até mesmo que logo ali desponta aquele incrível verdor do mar do Recife, logo ali, para além da janela, como acontece com Clara e seu apartamento vintage, da qual ela não quer abrir mão.

Aprofundo nessa questão da maestria. Ela difere da de um outro mestre pernambucano do cinema (são legião, também), Cláudio Assis, em que cada cena se constrói dentro do que eu chamaria de requinte. Nos filmes de Mendonça Filho, não há uma vibração seja nas cores, seja nos diálogos, seja até mesmo na atuação. A vida acontece, muito próximo daquela do próprio espectador, nós, que tomamos, como dizia, o nosso café e daí nos lançamos para o dia e as suas preocupações, que envolvem o trabalho, é claro – e esse não é mais o caso de Clara, uma jornalista aposentada – e a propriedade – esse o-que-é-meu-e-o-que-não-é sendo um assunto que, como em O som…, vai sendo explicitado aos poucos – mas também o conjunto das relações sociais, que incluem as que nos situam, eventualmente, enquanto patrões, ou usuários de serviços, parentes, amantes, etc..

O quanto pode haver de civilidade aí, de humanidade? E o quanto isso pode contrastar com a forma como o meu próximo (o cara que construiu ou constrói o prédio ou a casa onde moro ou irei morar) conduz a sua vida? Reconheço que aí está o ponto em que o filme vai ao encontro de temores que aqueles que ora deixam o governo fazem questão de alimentar em nós, seus ex-governados. Existe na nossa sociedade, sim – mas desde quando isso é novidade? –, uma predação extremamente forte. Convém, entretanto, confundi-la com fascismo? Eis uma primeira questão que deixo em aberto.

Voltemos, contudo, ao filme. É justo dizer que, nele, como no anterior, nada vibra? Não: e eis onde reside um segundo ponto de genialidade em Mendonça Filho. Em O som…, a vibração explode na cena final, somente, como se fosse o fruto de algo que se acumulava de forma oculta, imperceptível, ao longo de tudo o que nos fez chegar até aquele instante – o som ao redor, perfeito. Em Aquarius, essa estrutura vibratória, concentrada, contida, retardada, também ocorre, tendo como consequência a nossa inquietação levada ao limite quando aparecem aquelas três letras que todo filme traz no seu fim. Temos, novamente, um final bombástico, é tudo o que me cabe dizer.

Essa checagem de estilo, ou coerência, por parte do diretor, de parte do crítico, a garantir a, digamos, “boa procedência”, seria, enquanto crítica, no caso desse filme, algo de incompleto. Diferentemente do longa anterior, este filme traz uma protagonista. Uma mulher, como foi dito, que revela traços de uma humanidade que cabe se ter como bandeira; mas que também carrega consigo um outro traço forte, igualmente tema das querelas políticas atuais: a liberdade. Uma vez já abordado – quase en passant, é verdade – à luz dessas querelas o primeiro desses temas, passemos ao segundo.

Clara é uma mulher que se insere numa tradição familiar de mulheres livres. O filme começa com o aniversário de uma tia (sua ou do marido, não me lembro) que completa, anos antes – quando Clara ainda estava na faixa dos 30 –, 70 anos, lembrando a todos os que a homenageiam que, além de todas as conquistas mencionadas na sua biografia, havia o grande amor de sua vida que, não obstante, era um homem casado (com outra). A partir daí, já se estabelece um patamar de conversa no que tange às mulheres do filme e, particularmente, no que tange a Clara, a protagonista.

Ela irá confirmar ao longo do restante da película, já igualmente numa condição de viúva (há dezesseis anos), esse ser-dona-de-sua-própria-vida. Não é algo comum, notemos, dentro da tradição do cinema brasileiro. Tudo bem: temos lá as personagens de Leila Diniz e Darlene Glória (aliás, mencionada no filme), livres, mas com uma liberdade destinada a ser destruída pela realidade machista em volta. No caso de Clara, total auto-suficiência; céu de brigadeiro se não fosse pela ganância do próximo (algo que a afeta, mas não especificamente enquanto mulher).

Que leitura fazer dessa condição? Uma, possível, provável inclusive, é a de ser uma antítese da mulher “bela, recatada e do lar” que se apregoa, na guerra simbólica, ser a mulher que acompanha o governo pós-impeachment – a partir de uma leitura do que seja a condição da atual primeira-dama. Eu acho que não é por aí, até por que a gestação de Aquarius seguramente antecede esse bafafá.

Eu penso que não foi à toa que se escolheu Sônia Braga para fazer esse papel. Por vezes, ao longo do filme, dá uma certa impressão de que ela está um tanto quanto deslocada, milésimos de segundo atrás de todos os que com ela contracenam: uma espécie de ruído que, contudo, ela (junto com o personagem) logo compensa se colocando alguns milésimos de segundo na frente dos demais. A coisa assim vai até o fim bombástico, quando ela se mostra inteiramente bem situada, a atriz certa para o momento certo.

Sônia Braga, até onde sei, é uma atriz brasileira que, depois de ter feito sucesso em filmes que tiveram projeção no exterior, se estabeleceu nos EUA, em particular em Nova York. Parece que mora por lá até hoje. Como diz a música: se você é capaz de se estabelecer lá (NYC), você é capaz de se estabelecer em qualquer lugar. Penso eu que Sônia Braga fez, na sua vida, isso ao que estou atento no momento, a partir da leitura que estou fazendo de um livro  sobre o Brasil: uma transição. O livro chama Brazil in transition – beliefs, leadership, and institutional change e é de autoria de três brasileiros e um americano que iniciam estabelecendo que, ao falarem em transição, se referem a uma mudança de patamar e não somente de uma progressão linear e pretensamente segura. Eles identificam, no Brasil, a partir da conjunção entre duas crenças – a da inclusão social e a da aversão à inflação (via controle fiscal) – já inoculadas na sociedade, as condições para que o país, através das suas instituições, consiga dar um verdadeiro salto no sentido de se tornar um país plenamente desenvolvido.

Traduzindo: Clara é uma mulher cujas condições já existem no país, mas que ainda não se tornou real.

About Cadeajuju

Filósofo, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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