JOGANDO XADREZ NAS ALTURAS
Para muitos – mormente aqueles que, de um modo ou de outro, têm um envolvimento com o fenômeno artístico – é óbvio o que direi a seguir: a arte contemporânea se define por levar a cabo uma inteira inversão de perspectiva do entendimento daquilo que a arte é; e isso chega a um ponto tal, que alguns dos principais teóricos desse campo se sentem à vontade ao falar de um fim da arte (ou, ao menos, de uma história da arte). Porém, ao falar em arte contemporânea, talvez seja bom precisar a quê exatamente nos referimos. Estritamente falando, essa nasce por volta dos anos 1960, com o pop de Andy Warhol ou, quem sabe, a pintura de Jasper Johns, em que o foco recai exclusivamente sobre a percepção subjetiva do artista em relação ao universo que o rodeia – com destaque ao do próprio fazer artístico. Mas, se formos reparar com o devido cuidado, essas características já estavam presentes no ato inaugural da arte dita moderna, ou seja, nos ready-made de Marcel Duchamp, que datam da década de 1910.
Afirmar que o contemporâneo em arte se calca na percepção subjetiva do artista soa, entretanto, quase como uma platitude: estamos todos carecas de saber que, pra ser artista, tem que incorporar, na obra, uma dose qualquer de subjetividade. Para sair dessa névoa de pensamento, recorro a uma breve análise, um pouco mais aprofundada, da realização duchampiana. Tome-se a Fonte, o célebre urinol que ele expôs numa galeria nova-iorquina em 1917. Consistia em nada além do que a própria peça, comprada em alguma loja de material de construção, acrescida de um título e de uma assinatura em pseudônimo. Obviamente, era uma declaração (essas são sempre inesperadas, tanto quanto implicantes de um sujeito enunciante). Com que conteúdo? Isso também é relativamente claro: a pergunta sobre qual é exatamente o critério determinante para que algo – um objeto – passe a ser considerado arte.
O que há, alguém poderia perguntar, exatamente, de inversão – termo acima utilizado – nessa proposta? Em quê ela se configura como revolucionária? Acontece, conforme nos explica um filósofo da arte (Arthur C. Danto), que, até então, o objeto artístico era considerado um mero veículo de algo que estava, sempre, fora de si (objeto). Quanto mais neutro, fiel, diáfano esse veículo fosse em relação àquilo que ele carregasse, tanto melhor – e tanto mais vitorioso seria o artista que, digamos, manejasse tal “instrumento” (ainda que esse consistisse num conjunto de procedimentos). O artista era alguém à mercê de um trânsito – o trânsito da mímesis – bem maior que ele próprio: não lhe cabia, não havia espaço para algo como uma declaração. Ao pôr um urinol numa exposição, Duchamp estava, além de tudo, dizendo: eu existo, faço parte do mundo, e é somente através de mim, artista, que a arte existe.
O trabalho artístico de Raquel Nava – cuja exposição Besta Fera Pop Fauna, na Galeria Alfinete, acaba de se encerrar – é um que dialoga diretamente com essa tão bem intitulada obra de Duchamp: fonte. Lá, há cem anos atrás, inaugurou-se uma forma de afirmar existências mais do que coisas, objetos – por mais que essas afirmações façam uso de objetos os mais prosaicos a fim de se efetivarem. Warhol e a pop art deram continuidade a essa injeção de prosaísmo com fins declaratórios na arte – será que daí deriva a segunda palavra da salada assêmblica que em que consiste o título da exposição de Nava?
Pode ser. Mas o importante é que seria totalmente injusto deixar de perceber que, nesse diálogo com os primórdios, essa artista imprime algo de muito próprio. Sua pesquisa com a taxidermia e mesmo com dados da entomologia não é de agora. A tinta que é fruto da cochonilha foi tema de dissertação sua no mestrado na UnB. Do mesmo modo, tudo o que, tendo sido orgânico, é passível de se eternizar (afinal a Meca de toda arte) por meio de um procedimento como a taxidermia, tem marcado presença nas suas obras em diversas exposições – o mesmo valendo para ossos e cartilagens.
O mundo da assemblage – esse parente imediato do objeto encontrado cujo soberano inconteste será sempre a Fonte – é uma zona onde o ar é rarefeito: são conceitos o que lá é manipulado; é alta montanha, inóspita, perigosa – não é à toa que Duchamp era também ligado ao xadrez (o esporte). A inserção do orgânico nesse universo, tal como é promovida por Raquel Nava, parece-me ter o dom de bagunçar esse coreto que parecia já tão próximo de uma perenização – porque são poucos os que têm condição de acessá-lo. É um sopro de vida, mas não no sentido de embelezamento – isso, na verdade, seria a morte do ready-made – e sim de um elemento que vai se somar à encruzilhada conceitual. A vida, na morte, emerge enquanto vestígio; e o vestígio, enquanto objeto, bate na porta do objeto que foi pinçado pela garra do artista-condor.