A VIDA NA CIDADE DA PALAVRA
O outro dia, uma amiga um pouco mais jovem contou como foi sua primeira ida, ainda adolescente, ao Cine Brasília. Foi com um amigo e ambos saíram de lá sem entender o que havia se passado, pois, no filme, nada – ou quase nada – acontecia, um pouco como na vida dos dois à época. Era Estranhos no Paraíso, filme de 1984, e eu calculo que, se a exibição tiver sido próxima do lançamento, essa minha amiga devia ter por volta de uns doze anos. Conto esse episódio como introdução à crítica de Paterson, última obra de Jim Jarmusch, recém estreando nos cinemas daqui, porque me dou conta de que, assim como essa minha amiga – e apesar de Jarmusch ser, sem sombra de dúvida, o cineasta por excelência da minha geração – eu nunca tive a maturidade suficiente para entender seus filmes. Uma condição que pretendo me esforçar, a partir de agora, para que finde, tendo como estopim essa mais recente pérola cinematográfica.
Jarmusch deixou marcas na maioria dos meus contemporâneos, ou melhor, dos meus amigos. Seus filmes dos anos ’80 colavam a câmera em personagens jovens que se deparavam com algo próximo ao que Kundera cunhou de “insustentável leveza” (do ser). Talvez fosse o fim da guerra fria, talvez o ocaso da modernidade, enfim, pode-se dar diversas interpretações para o vácuo que girava em torno dessa juventude levando-a a depositar suas fichas no “mero” estilo como forma de atravessar a vida. Filmar em preto-e-branco os dias atuais: isso já era um parti-pris em favor do estilo; e, ainda por cima, dando forte ênfase à dissonância nos costumes, seja no que se veste, seja no que se faz, no que se diz (não é à toa que Tom Waits é frequentador assíduo dos seus elencos). Sobre café e cigarros, de 2003, parece-me, faz com que tudo isso atinja uma quintessência: trata-se de um filme-estilo.
Trem mistério, Uma noite sobre a terra e Homem morto, todos do início da década de ’90, são três filmes que não vi. No entanto, sei bem que são filmes cultuados por boa parte dos meus amigos. Caberia a pergunta: o que levou a essa falta de adesão de minha parte? Lembro de ter visto Ghost dog (1999), que só confirmou a toada, como diria, ácida, desse cineasta. E o mais recente Flores partidas (2005), mas aí já numa certa visada quase nostálgica, como se Jarmusch já não fosse capaz, como sói se crer que aconteça com os “velhos”, de qualquer impacto.
Como disse no início, percebo, a partir de Paterson, que houve cegueira de minha parte ao longo desses anos todos. Que meus amigos jarmuschianos sempre operaram num nível acima, inacessível pra mim por motivos que não são em nada alheios ao que é abordado nesse filme.
O herói de Paterson é um poeta. Ele recebe esse nome que dá título ao filme ao mesmo tempo em que mora na cidade homônima, sua cidade natal – e, afinal, acaba-se por não ter certeza a que Paterson o título se refere. Essa cidade é a terra de dois grandes poetas americanos, um dos quais é abertamente cultuado pelo protagonista; é um celeiro de poesia. Mas, calma lá, que Paterson, o nosso herói, não tem ainda reconhecimento algum: ele é simplesmente um motorista de ônibus do sistema de transporte urbano. Rala que nem condenado, mas nada – nem mesmo a caixa de correio de sua residência que insiste em tombar pra um lado, todo santo dia, depois que ele, todo santo dia, a endireita – o tira de um estado de permanente (atenção à) Graça: “sem reclamações” diz ele ao colega de origem indiana que desfia as suas como se fossem a abundante população de sua terra natal.
E perceba-se que Paterson tampouco possui estilo algum. Não tem trejeitos, veste roupas as mais padronizadas, nem sequer se entende com o seu cachorro (um buldogue inglês que merece, no Oscar do ano que vem, prêmio de coadjuvante) sobre qual direção seguir ao longo do passeio diário. Deixa toda a questão de estilo, toda a dissonância, para a sua esposa, que não conseguiu, ainda, descobrir exatamente como canalizá-la: se para a música country ou para os cupcakes estilizados. Mas os dois se entendem; ele a ama (e ela a ele).
A poesia acompanha Paterson ao longo do seus dias. No filme, ela vai sendo escrita na tela, à medida em que ele a joga no seu caderno “secreto”. Palavra por palavra. Por vezes, essa escrita se interrompe – a realidade bate à porta – mas só para ser retomada logo adiante. A certa altura, ela fala sobre as dimensões do real: conforme somos ensinados, como numa caixa de sapatos, elas são três. Dizem, continua ela, que há uma quarta dimensão, o tempo – e que, porventura, haveria outras –, mas isso já entra no terreno do pouco seguro, do questionável. É claro: a poesia meio que dispensa o tempo; ela abre fendas que acabam por trucidar, picotar (como, aliás, ocorre, a certa altura, com um objeto importante do filme) essa substância.
Nunca em minha vida eu considerei a possibilidade de lidar com poesia. No entanto, hoje, sinto que dela me aproximo. É algo que me empolga: sair atrás da palavra exata para descrever tal ou qual sensação ou situação; e uma vez ela surgindo, perceber sua capacidade de me remeter a outras situações e/ou imagens obtendo como resultado final distorções que têm algum sentido, mas nunca o mesmo do início. E então jogar isso no real e ver o que acontece. Não deixa de ser algo relacionado com a política.
Meus amigos jarmuschianos já sabiam disso: que o que no fundo esse cineasta estava jogando na tela era algo da ordem da poesia. Interessante notar como que em muitos dos filmes desse norte-americano, a certa altura, aparece um personagem vindo de outro canto do mundo, portador de um novo sotaque. Em Paterson isso também ocorre: trata-se de um japonês que está na cidade praticando um turismo-poético. Só que ele também é poeta e, lá pelas tantas, na conversa com o protagonista – que atravessa um momento (raro, mas com um porquê bem preciso) de depressão –, comenta que só se escreve poesia na língua nativa, que poesia traduzida “é como tomar banho com capa de chuva”. Bem, o que posso dizer, depois de tantos anos de ignorância, é que sinto ter chegado a hora de mergulhar, sem capa, em tudo que envolva a palavra e seu poder.