A ARTE DE FUGIR DA GRANDILOQUÊNCIA SEM SE APEQUENAR
Fui assistir ao filme Poesia sem fim do chileno Alejandro Jodorowsky com uma expectativa múltipla. Primeiro, por se tratar de um cineasta conterrâneo meu e de alguém que ganhou fama internacional enquanto – mais do que propriamente cineasta – pensador, intérprete do presente. Segundo, pelo fato do filme ser autobiográfico: apesar de Jodorowsky, hoje com 88 anos, viver na França desde os anos 1950, parecia-me (e nisso não me enganei) que o filme giraria em torno de suas origens nesse país que deixei ainda criança, mas que, por certo, me define em muitos aspectos. Por último, o título do filme, a poesia, algo que na minha vida tem adquirido importância enquanto projeto de vida.
Aliado a tudo isso, estava dada a chance de começar a saldar uma dívida para com esse artista/pensador. Tenho amigos aqui no Brasil que acompanham sua trajetória e, por vezes, se surpreendem ao constatar a minha quase completa ignorância a seu respeito. Não sei nada sobre seus filmes anteriores. Idem sobre seus livros. Somente havia tido contato, aqui e ali, com algumas de suas visões através de entrevistas ou artigos de jornal. Sua crença no poder da arte, da criação, era algo em torno do qual pactuávamos, porém sem adesões maiores de minha parte.
Hoje, depois de ter visto Poesia sem fim, sinto-me mais próximo desse ser. Creio que a palavra seja essa mesmo: lá pelas tantas, ele a usa.
Um ser que, de fato, se realizou. Se há um paralelo, creio eu, na proposta dessa cineautobiografia, esse reside no último, quase póstumo, filme de Hector Babenco, Meu amigo hindu. Vidas consistem de algo de extrema delicadeza; basicamente, como já foi dito por Vinicius de Moraes, elas são feitas de encontros. Babenco contou a sua história a partir do encontro com um garoto hindu que ele conheceu numa clínica norte-americana onde ambos batalhavam contra o câncer. Alguém que já filmou com Jack Nicholson e Meryl Streep e teve, digamos, Hollywood ao seu dispor, bem que poderia ter abordado tudo isso na hora de contar a sua história; porém, eis que resolve se pautar, nisso, por esse outro “colega”, numa procura evidente do seu ser, talhado por uma certa solidão.
Jodorowsky é tão artista e tão inteligente quanto Babenco. Meu amigo hindu, ao contrário de Poesia sem fim, se passa no país que esse cineasta de origem argentina escolheu como destino, o Brasil, e narra algumas das peripécias de sua vida adulta. Sua vida na Argentina não entra, assim como não entram, diretamente, as escolhas que o conduziram a se tornar cineasta – é somente na convivência com o amigo hindu onde isso se revela, meio en passant. Já Jodorowsky escolheu justamente esses momentos (troque-se somente o termo cineasta pelo termo poeta). Uma escolha, quem sabe, menos complicada; mas, também, com chances de cair numa grandiloquência a respeito de si mesmo.
A poesia no Chile é algo que se assemelha às águas termais que jorram do seu solo, às vezes com a força dos gêiseres. Filmes recentes sobre Pablo Neruda têm jogado luz sobre esse caso luminar, ao mesmo tempo em que o fazem no tocante às perseguições que ele enfrentou devido a suas posições políticas. Neruda e a política, conforme vemos em Poesia…, não foram referências para Jodorowsky. Sim, ele deixa o Chile em função da ascensão de um caudilho, mas não só: seu ídolo local, o poeta Nicanor Parra, lhe sintetiza, a certa altura, a realidade da profissão nesse país. Como se não bastasse todo o preconceito familiar e social que teve que enfrentar ao optar pela poesia, não ter meios de sobreviver economicamente seria mais um obstáculo.
Encontros, disse eu acima, são o que tecem o delicado tecido de uma vida. Saber identifica-los enquanto os verdadeiros elementos na composição de um ser, eis o desafio para cineastas que resolvem contar trechos – os mais significativos – de suas vidas. Ocorreu a Jodorowsky de não se encontrar – por não querer, diga-se – com alguém como Neruda nesse pequeno país em que todos se esbarram com todos; mas sim com uma trupe de “malucos” que o acolheram e que foram por ele acolhidos.
Jodorowsky, assim como Babenco, galgou os degraus da fama, se estabeleceu – e “venceu” – enquanto poeta/artista. Porém, o maior indicativo de seu sucesso, a meu ver, reside nesse reconhecimento dos elementos os mais singelos que, ao longo da vida, lhe proporcionaram a chance de ser alguém absolutamente único, singular. Os retratos que faz desses personagens – e que se pode achar carregados em demasia nas tintas (a mãe que só fala cantando liricamente, a amiga bailarina que só anda na ponta dos pés, a carnuda poeta amante que engole litros de cerveja, os anões sofredores, o companheiro poeta, Enrique Lihn, que escreve até no assoalho do quarto) – são tão vitais para aquilo que ele quis transmitir a respeito de si quanto a procedência (e idade) longínqua do amigo de Babenco no relato que esse fez de si mesmo.
Sói que se tenha a respeito de Jodorowsky a desconfiança que se tem em relação a tudo o que se distancia do laboratório e da sua extensão, a clínica. Ao tarô, por exemplo, que ele usa e defende publicamente enquanto auxílio da alma e forma de conhecimento. Já li quem criticasse esse seu último filme acusando a sua estética de ser “melancólica, anacrônica e incompreensível”[1] e o seu pensamento de beirar a impostura. Sugiro a esse pessoal que reveja o filme sob a ótica de que a poesia pode ser definida como uma ciência que, por meio da palavra, atua na alma e na sua fatal errância em meio à vida. Há coerência, pois, entre ela e o tarô; e confluência de ambos com o decisionismo individual que um Paul Veyne enxergava como sendo o grande aporte de Foucault ao pensamento atual. Se um é charlatão, o outro o seria tanto quanto.
[1] Eduardo Escorel na piauí digital.