MARGEM HOJE ESTREITA (MAS NAVEGÁVEL)
O escritor Enrique Vila-Matas, em entrevista o outro dia na Folha (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/08/o-artista-deve-ser-nao-original-diz-enrique-vila-matas.shtml), fez uma afirmação muito interessante: a de que tanto o direito de se contradizer quanto o de cair fora deveriam fazer parte da Declaração Universal do Direitos Humanos. Dizia isso à luz de sua literatura, que é da órbita da “ficção crítica” e se apropria da repetição no intuito de, paradoxalmente, criar o novo, de sair de uma exigência “fossilizada” de originalidade.
Cair fora foi o que meu compadre Mário fez no começo deste ano, indo morar – assim como milhares de outros brasileiros – no exterior, levando consigo (e sendo levado por) mulher e filhas adolescentes. A tecnologia do mundo atual tem permitido que sigamos nos falando, ouvindo e vendo com uma frequência quase igual à de antes, de modo a que a saudade, numa imaginária Lei de Responsabilidade Amorosa, seja mantida abaixo de um “limite de alerta” – o mesmo ocorrendo com a extensa rede de outros fieis amigos que aqui ele deixou. Enfim, em tom de blague, digo que não duvido que o Mário em breve se torne amigo do Vila-Matas, que é espanhol e, imagino, vive logo ali, atrás do monte.
Mas é sobre esse outro direito humano universal reivindicado pelo autor de Dublinesca e Viagem Vertical, o de se contradizer, que gostaria de discorrer a seguir. E fazer isso sem abandonar o tema do amigo emigrado, posto que, dessa mexida, ainda restou o seu filho, meu afilhado, jovem e amável jornalista e vídeo maker, que optou por aqui ficar; e que, em recente e franco post do Facebook – e peço-lhe perdão pela inconfidência –, manifestou o sufoco que está sendo a escolha de candidato(s) para a próxima eleição. Noves fora os fundamentalismos, essa agonia é geral, eu diria, sendo ainda mais aguda para quem tem pouca experiência de vida. Meu conselho, no caso, é o de ser capaz de se assumir como navegante no Estreito da Contradição.
O que é que vem a ser isso? Creio ter condições de explicar, tendo em vista ser o que tenho feito, ultimamente, ao ter me disposto a contribuir com duas campanhas de candidatos, uma para senador, outra para deputado distrital, ambas do Partido dos Trabalhadores. Eu, que nunca militei (a não ser no âmbito sindical). E eu, que, cada vez mais, me sinto partidário, no espectro político, de um centro, em vez de uma esquerda – e que, em função disso, estou certo de que não votarei, nem para presidente, nem para governador, nos candidatos desse partido.
Votarei naqueles dois únicos candidatos petistas porque tenho tido a oportunidade de conhece-los mais a fundo – em especial um deles, Wasny de Roure, que, como presidente da comissão onde atualmente estou trabalhando, no âmbito do poder legislativo local, tem tido a sensibilidade e feito uso, por primeira vez ao longo de tantos anos de carreira nesse órgão, do meu potencial profissional. Tenho aprendido a admirá-los, em grande parte em função de ter notado neles um grau de humildade, bastante raro nesse e em demais meios, que faz com que consigam prestar atenção a seres tão inquietos e um tanto fora de padrão como eu. Claro está que não comungo com 100% de suas convicções – a algumas delas, até, sou definitivamente refratário –, mas isso não é empecilho para um apoio, quando posto numa balança em que também entram qualidades pessoais e histórico de vida e de posicionamentos. E quando se leva em conta esse dom de ouvir. (A outra candidata sendo Arlete Sampaio).
Às margens do Estreito da Contradição, o que encontrar? Muita “terra firme” que, no entanto, tem ficado cada vez mais claro ter o inconveniente de ser o berço de ódios. Ou será que são os ódios que acabam se cristalizando em ilusões de terra firme? Não sei, só sei que escrevo no dia seguinte de um atentado contra um candidato a presidente. Tudo indica que esse candidato, que, por sinal, é um dos principais patrocinadores do ódio, se recuperará – o que é de se esperar – e, inclusive, sairá disso reforçado – o que não é de se esperar –, mas o crucial a notar nisso é o quanto que o que já era espinhoso para um jovem eleitor e cidadão como o meu afilhado ganha contornos ainda mais assustadores.
Por isso, minha recomendação, que vale para mim inclusive, é a de não exigir demais desses postulantes, mormente quando se trata dos principais cargos, os ditos majoritários. Eles podem estar na mesma situação que nós eleitores, de terem que ser um pouco contraditórios, de não terem respostas engatilhadas para todo e qualquer problema. Claro: se estão se apresentando como líderes, haverão de ter programas, rumos claros que indiquem suas intenções e o firme empenho de que seguirão o que estão prometendo – tudo o que não precisamos, a esta altura, é de um novo estelionato eleitoral. Mas espera-se que também possuam a habilidade de contornar icebergs na medida em que eles se apresentarem, de aglutinar forças de modo a ter suficiente empuxo na hora que uma Moby Dick resolver dar uma estocada conclusiva.
Estamos todos num mesmo e único barco. Existe uma arte de navegar e, creio eu, temos gente capacitada para tal, o que equivale a dizer: lideranças, analistas, especialistas e generalistas e uma boa dose amor por esta pátria e pela vida. O que atrapalha, o que tem atrapalhado bastante, é a noção de que tudo tem remédio – seja esse as armas, seja a utopia (que, não raro, desemboca no primeiro). Não tem: nós é que temos que inventar. Aprender a trocar, desde pequenos, a roda em pleno movimento – e a nos conhecer mutuamente.