Lições

CHEGA DE MAUS-TRATOS

É, atualmente, um tema comum, de escrita e de conversa: o que a pandemia tem nos trazido de lição? Digo “tem nos trazido” e não “nos trouxe”, porque ainda não sabemos por quanto tempo mais teremos que ficar confinados (claro, se não formos covidiotas, esse termo tão preciso que ouvi o outro dia, descrevendo aqueles que insistem que é uma gripezinha e circulam por aí sem medo e sem máscaras, contaminando e sendo contaminados).

O estalo para escrever a esse respeito me veio hoje cedo, ao ver uma foto, no jornal, do Paulo César Pereio, um grande ator brasileiro, que encarnou como poucos o cafajeste (o típico macho brasileiro), sendo vacinado. A explicação para essa precocidade – afinal, estamos ainda no raio das 15 milhões de doses em território nacional, quando serão necessárias mais de 440 milhões – vinha na legenda: ele é um dos moradores do Asilo dos Artistas, no Rio de Janeiro. Pra mim, a lição mais evidente tem a ver com essa aparição repentina (ou nem tanto, já que levamos dez meses nisso) de tudo o que maltratamos, antes, bem antes da chegada da Covid-19, todos aqueles pelos quais o nosso presidente da República, dentro da sua necropolítica, não mexeu uma palha: os artistas e os informais, aqueles que vivem, praticamente, do que o dia (ou a noite) lhes apresenta.

Alguns poderão dizer: como assim, e o auxílio emergencial? E a Lei Aldir Blanc? Em resposta, eu afirmo: ambas iniciativas do Congresso, a contragosto do presidente e dos seus áulicos. Cansamos de ver os seus apelos para as pessoas se jogarem de volta à economia, contando, para tal, com a ilusão da cloroquina e similares, bem como com uma lenda de que brasileiro seria naturalmente imune. Além, é claro, do consolo de que “todos morreremos um dia”.

Artistas são, em grande parte, trabalhadores informais. São pouquíssimos os que têm salário. A maioria se vira, dando aula, criando micro e pequenas empresas de prestação de serviços, empreendimentos de porte suficiente para a sobrevivência, muitas vezes, pessoal. A identidade desses trabalhadores – acostumados a, digamos, uma visibilidade – com o trabalhador informal de baixo ou nenhum reconhecimento – todos os invisíveis de que tratam alguns pesquisadores da área social e que, de repente, explodiram aos olhos dos formuladores de políticas – passa, eu diria, não só pelo aspecto da precariedade contratual que ambos ordinariamente experimentam, mas, também, por um certo vínculo que ambos têm com uma necessária – porque humana – liberdade.

Pois por mais precário que esteja, o informal invisível é dono do próprio nariz. No cálculo dos prós e contras de uma carteira assinada e de um salário mínimo, com toda a aporrinhação de chefe e tudo o mais de um emprego formal, muitas vezes opta-se pela alternativa do serviço diário, mais bem remunerado na hora, mas sem direito a coisa outra alguma – só que podendo avisar que “hoje não vai dar, deixamos pra amanhã” ou mesmo, dependendo das condições do mercado, mandar o chefe babaca praquele lugar quando der na telha.

Já a liberdade do artista é um pouco diferente: ela está inscrita no seu próprio fazer, a arte sendo, como já definiu Mário Pedrosa, “o exercício experimental da liberdade”. Posto de outra forma: se o que resulta da sua produção não for algo que contenha, em alguma medida, liberdade, não é arte. É um tanto mais complexo; e essa complexidade é exatamente o que incomoda a tantos políticos da cepa – autoritária – do presidente. A arte incomoda porque ela é democrática por essência, ela nunca se dá por satisfeita com uma única e definitiva resposta às coisas. 

Os autoritários, quando chegam ao poder, se vislumbram nele para todo o sempre (vide o facínora Trump). Eles acham que são a resposta, que têm a resposta para tudo: não cabem mais críticas, não cabem os que pensam diferente ou se desviam do modelo que eles, autoritários, estabelecem. São, por conseguinte, adversários da democracia, esse regime em que o poder passa, periodicamente, de mão em mão – e em que o exercício de emitir opiniões e de ouvir a voz do outro só torna o conjunto mais rico e mais apto para tomar as melhores decisões.

Situada no universo das tecnologias de poder, a democracia, pode ser clichê dizê-lo, é como uma chama, acessa há aproximadamente 2,5 dezenas de séculos e reavivada de forma quase avassaladora há coisa de 2,5 ou 3,0 séculos. E um anti-clichê está em perceber que a sua manutenção no modo “aceso” recai fortemente sobre esses seres que estão colados à liberdade, mas tão longe de se confundirem com os políticos: os artistas. Os primeiros, levam os louros por tal “serviço” – e há de se reconhecer que alguns, de fato, o prestam, honrando a “profissão” – ; mas são os segundos aqueles que, na essência e no dia-a-dia, não se rendem ou se calam – e que deveriam, por isso, ser tratados com muito mais respeito e ser alvo de maior prestígio.

Claro, há momentos em que eles dão bola fora, como o grupo de atores globais que, há uns anos, estrelou, gratuitamente, um filme sobre a vida da deputada Flordelis (vide reportagem na revista piauí nº 172), uma suposta “santa”, hoje sob acusação de ter matado o marido. No geral, porém, o que vemos está mais próximo do ocorrido com o grupo vocal Boca Livre, recentemente dissolvido, após tantos anos, porque somente um entre os seus quatro históricos componentes aderiu às sandices do bolsonarismo, inclusive declarando que não se vacinará. Ou seja, um teto máximo de tolerância, no setor, em volta dos 25% para roubadas.

Estamos errados, como sociedade em busca de pleno exercício da democracia, no desdém que damos à cultura e aos seus principais personagens, os artistas. Essa, a lição número um que eu tiro deste nosso último semi-giro em volta do sol.

Quanto ao devido reconhecimento do bravo povo brasileiro, na figura dos quase 60 milhões de trabalhadores informais e invisíveis – esses que conseguem, não sei como, se virar com R$ 600 ou R$ 1.200 ao mês por domicílio (apinhado) –, a principal política pública é, sem dúvida, a geração de mais e melhores empregos; o que passa, necessariamente, pela iniciativa privada e pela livre-concorrência. É claro, essa é uma equação nada fácil; sabemos o quanto há de falta de escrúpulos nesse setor – mas não temos tido, infelizmente, provas reiteradas de que isso também existe, ao longo de todo o espectro político, no setor público?

Tendo ciência de que em lugar algum há supremacia beatífica, creio que o que este país precisa é apostar no seu povo. Nesses 60 milhões que, todo mês, realizam milagres. São, certamente, muito melhores administradores do que outros tantos com esse título universitário. Por outro lado, na parcela de empreendedores honestos que só não alçam voos mais altos porque não é nada fácil, em absoluto, fazer negócios perante um Estado cartorial e ineficiente, que opera à base de inconfessáveis favorecimentos e demais (e variadas) mutretas.

Ambas essas, acima, são circunstâncias que já estavam postas bem antes da pandemia, mas que saltaram à vista de maneira definitiva no seu decorrer.

About Andrés Rodríguez Ibarra

Sociólogo e doutor em filosofia, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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