Priscilla, de Sofia Coppola

ICONOCLASTA POR EXCELÊNCIA E, TALVEZ, NECESSIDADE

Recentemente, revi o documentário que Wim Wenders fez sobre Tóquio, Tokyo Ga (1985), e é a partir dele que encontro elementos para tentar entender esse outro filme atualmente em cartaz, Priscilla, de Sofia Coppola. São ambas criações que reviram o passado e trazem personagens de uma, digamos, realeza artística. Priscilla resgata a relação entre o Rei do Rock, Elvis Presley, e a jovem texana que ele conheceu numa base militar norte-americana na Alemanha do pós-guerra, tornando-a sua namorada e, pouco depois, esposa: Priscilla Presley. Já o filme de Wenders se refere ao cineasta japonês Yasujiro Ozu, cujos filmes em sua totalidade foram feitos e se passavam naquela cidade. Wenders ama o cinema de Ozu e quis melhor compreender o que estaria por trás desse amor. Ele entrevistou alguns dos seus colaboradores, então ainda vivos, cujos depoimentos revelam, nesse personagem, uma verdadeira majestade – um deles, aliás, é explicito a esse respeito –, pela forma como ele tratava as pessoas, como imprimia sua marca nas suas criações.

Mas a conexão “régia” entre ambos esses filmes não é, nem de longe, a principal. A minha tese é a de que Sofia Coppola é a expressão, nos dias atuais, do cinema de Wenders; ou melhor, de que ela é wendersiana por excelência. Se não, vejamos.

Priscilla, que se baseia num livro de memórias da própria personagem-título (além de tê-la como produtora executiva), nos apresenta um Elvis, basicamente, freak. Eu não assisti ainda ao também recente Elvis, de Baz Luhrman e, portanto, posso estar sendo leviano ao supor que essa nova versão irá ferir quem dele gostou e/ou através dele aumentou a sua admiração por esse ícone da música ocidental. Sei que traz um “culpado” para o quão perturbado ele teria ficado ao longo da carreira: seu empresário, os negócios.

O filme de Sofia Coppola vai por um outro lado. Ressalta o que seriam as qualidades de um príncipe, que descobre a sua princesa e procede conforme todo o script, tratando-a, de início, com o máximo de decoro e respeito. Em sua profissão, ele era um puro animal que mexia com a libido das massas. Mas, com ela, beirava a pudicícia! (Tudo bem: ela era uma garota quando se conheceram e começaram a namorar, mas, a certa altura, houve a permissão da sociedade e, principalmente, dela; contudo, o ato carnal propriamente só se consumou após o súbito casamento, quando havia muito que eles já compartilhavam o leito). 

Além disso, até em situação pior do que uma princesa de verdade, Priscilla não tinha direito nem a trabalhar: tinha que estar sempre no outro lado da linha quando ele telefonasse (não havia celulares então). Era, em suma, um bibelô – mesmo quando estava prestes a ser mãe, ele resolve que esse era o momento de “darem um tempo”. Sem muito alarde e bem postumamente, Elvis cai do trono; primeiro, com o livro da sua ex, em seguida, com o filme de Sofia.

O que, além de um senso de justiça histórica e uma certa sororidade, teria atraído Sofia na direção da história de Priscilla? Respondo que vejo uma enorme coerência com a sua busca propriamente cinematográfica. Os filmes de Sofia Coppola em geral trazem o lado B. Sendo filha de quem é – e tendo adotado a mesma profissão que o pai, cineasta de épicos – eu acho que ela resolveu se dedicar à franja, àquilo que resta. Como a dizer que, no final de cada dia de filmagem, sobra ainda algo a ser contado – algo da ordem do doméstico.

Se formos reparar, na maioria dos filmes dessa diretora há a presença de alguma coisa grandiosa que, contudo, aparece enquanto mera insinuação. Em O estranho que nós amamos (2017), é a Guerra Civil Americana, em Maria Antonieta (2006), a Revolução Francesa, até mesmo em Encontros e desencontros (2003), uma Tóquio e um Japão desafiadoramente modernos e de difícil (ou impossível) leitura; e, invariavelmente, o que é mostrado são as repercussões dessa ordem grandiosa, ou pública, no lado de dentro, no ambiente privado – no caso desses três, respectivamente, no internato feminino, no grande palácio, nas dependências do hotel. E quando esse espaço privado não fica suficientemente claro nas retinas do espectador, Sofia ainda recorre aos nossos ouvidos, via trilha sonora: nunca hei de esquecer dessa parte de Maria Antonieta, com canções de bandas de rock dos anos 1980 (Siouxsie, Gang of Four, Adam and the Ants, Cure), as bandas que eu escutava e que jamais esperaria num filme “de época” como aquele.

Em Priscilla, temos tudo isso novamente. Temos a mansão Graceland – quase uma prisão, aliás – mas, mais ainda, a certa altura, numa cena em que o marido estelar adentra a residência com o seu onipresente entourage e todos se sentam à mesa para uma refeição: o que aparece na tela, de forma quase obstinada, é somente o rosto um tanto incrédulo da esposa. Não é o público – ou, no caso, o semipúblico – que interessa, mas o privado profundo.

Dou razão a quem, a esta altura, estiver se perguntando: e cadê o Wim Wenders e seu filme homenagem nisso tudo? Tokyo Ga é uma riquíssima meditação sobre esse meio de expressão, partindo da obra de Ozu (um cinema, diga-se de passagem, muito doméstico). O narrador, em inglês(!), é o próprio Wenders que, lá pelas tantas, lança aquilo que eu chamaria de luz decisiva ao teorizar sobre o significado do que está na lápide do túmulo de Ozu: o mero velho caractere chinês da nulidade, MU, “nothingness”, dispensando até o nome de quem lá descansa. Essa nulidade é, ele pensa, o contrário da realidade, que é algo que todos nós carregamos. Cada um de nós, espectadores, está imbuído de realidades, imagens, ideias e, com elas, vamos ao cinema. A grande magia então acontece quando algo lá na tela, qualquer coisa, qualquer elemento, também uma realidade (visível ou audível), nos captura porque conversa com algum elemento da nossa realidade, ambos possuindo verdade. É algo de muito privado; e não é todo cineasta que consegue chegar nisso. Ozu, na opinião de Wenders, conseguiu; a sua Tóquio, não mais presente, conversava conosco (ou com ele, Wenders) nesse nível, remetendo a estados nossos os mais íntimos – não à toa ele dedica o filme aos seus pais e ao seu irmão, o seu núcleo familiar. Uma comunicação se dava, ligando seres tão distantes geograficamente (Wenders, ainda como espectador em Berlim, Ozu como “rei” de Tóquio).

Mas insistamos em Tóquio! Novamente, será por mero acaso que Sofia Coppola situou a sua história de amor mais pungente, o seu encontro-mor cinematográfico, Encontros e desencontros, nessa cidade do início deste século? Cidade essa, como fica muito claro em Tokyo Ga – e no recado final de Ozu sobre a vigência do nada –, tão propensa ao desencontro? O título original desse filme, “Lost in translation”, creio que nos diz muito. Referindo-se à barreira linguística enfrentada pela dupla amorosa norte-americana perante a cidade, acaba pairando sobre os personagens que, ainda assim, dão conta de encontrar, ou de criar, um refúgio comunicativo (entre si mesmos). A realidade de um acaba atingindo a realidade, o verdadeiro, do outro e, por essa via, saem, saímos todos, da nulidade. Isso é ou não é Ozu/Wenders?

About Andrés Rodríguez Ibarra

Sociólogo e doutor em filosofia, autor de uma tese sobre a liberdade em Foucault, defendida em 2008 na USP.
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