Decifrando as urnas

EXISTE ÉTICA NA (SENSAÇÃO DE) SUPERIORIDADE?

Em breve faremos um mês com presidente e governadores (alguns) eleitos. Tempo suficiente para se afastar um pouco do espanto e tentar entender, com o auxílio da razão, o que de fato aconteceu nessa eleição. As forças democráticas foram derrotadas? Essa me parece ser a pergunta crucial, posto que é do lado delas que me vejo situado e disposto a seguir caminhando – e foi por isso que julguei, a certa altura do segundo turno, que a melhor opção seria o voto em Fernando Haddad.

Um primeiro dado a ser levado em conta é o fato de que Bolsonaro se elegeu de forma limpa, dentro dos critérios preestabelecidos. Uma maioria expressiva de cidadãos brasileiros e aptos a votar foi às urnas e manifestou, livremente, a sua crença de que era essa a melhor opção. Pode-se alegar que houve fake news, jogo sujo, disparos ilegais em redes sociais: ok; porém, lembre-se o quanto essa mesma estratégia, baseada na difusão de mentiras, não foi utilizada contra a candidata Marina Silva na eleição de 2014. Imprensa e tribunais eleitorais noticiaram e fizeram e fazem a checagem que, até o momento, não apresentou fatos robustos o suficiente – e esses, a esta altura, teriam que ser de uma flagrância superlativa – para uma anulação do resultado.

Consideração mais grave diz respeito à, digamos, plataforma sobre a qual esse candidato se elegeu: um conjunto de valores distantes do que se entende como sendo aqueles que corresponderia a uma democracia moderna abrigar, dada a liberdade individual que lhe é inerente. Bolsonaro, há anos, é porta-voz de visões retrógradas e preconceituosas no que tange aos costumes: foi através dessa atuação que ele acumulou fama em meio ao Congresso Nacional e à mídia. E o fato de que um contingente tão expressivo de brasileiros tenha, agora, lhe dado o voto é algo que deixa enorme perplexidade, conduzindo à pergunta: somos intimamente tão desumanos – a ponto até de dar crédito (e logo esse, de líder da nação) a quem defende a tortura? Desconhecíamo-nos à larga em nosso pendor autoritário?

Acho que temos que ir com calma em relação a esse tipo de conclusão – note-se que nem sequer entro na falácia de achar que tudo isso não passa da consolidação de um “golpe” que, evidentemente, não existiu. Não me parece que os que votaram em Bolsonaro o tenham feito fundamentalmente em função da visão de mundo estampada nos seus discursos cheios de ódio e crueldade, mas sim de ter ele, com eles, condensado na sua figura o inconformismo difuso e, ao mesmo tempo, furioso com a política e, em especial, com o PT. Num ambiente saturado por mentiras – como ficou claro a partir das revelações da Lava Jato e da posterior e renitente recusa, inclusive da militância petista e seus satélites, nas redes sociais e demais foros, em reconhecer os erros cometidos –, alguém que passava um mínimo de autenticidade (ou um máximo, se formos levar em conta o conteúdo explicitamente ofensivo e degradante das suas falas) passou a adquirir as feições de boia de salvação, por mais improvável que isso parecesse.

Voltando às forças democráticas, parece-me que um primeiro passo a ser dado é reconhecer que, até o momento, Bolsonaro jogou e joga o jogo da democracia, inclusive com perspectiva nenhuma de cometer algo como um novo e já patenteado “estelionato eleitoral”. Em seguida, olhar para si mesmo à procura da eventual existência de atitudes perante o outro e até de falta de honestidade para consigo mesmo que tenham provocado uma tamanha desconfiança por parte de tanta gente. Sim, a roubalheira do Petrolão é fato incontestável, mas será que, para além dele, não haveria também outras barreiras de cunho ético que foram se estabelecendo ao longo dos anos – ética aqui entendida sob o duplo aspecto de uma situação na qual não há respostas prontas (ou fáceis), tanto quanto uma em que o que está em jogo é a liberdade no seu sentido essencial, de algo que se exerce nas relações?

Não haveria uma certa – e antipática, para dizer o mínimo – superioridade daqueles que supostamente, detém a verdade (como se essa existisse) da política? Um certo elitismo, uma diferenciação suspeita, estabelecedora de um “nós” e de um “eles”? Uma certa obrigação de pensar dentro de determinados parâmetros, a partir de certas visões e com o uso de exclusivos conceitos? Em que medida se está assim tão imune a formas de autoritarismo? Em suma, se perguntar até que ponto a denominação de “democráticas”, por parte dessas forças, não incorpora um descabido ufanismo, não realiza uma apropriação demasiadamente apressada.

Bolsonaro e os governadores que saíram eleitos das urnas terão quatro anos pela frente e o rol de estragos que eles poderão deixar pode ser grande. Porém, esse é um risco inerente a todo e qualquer governo, eleito ou não. Como disse acima, Haddad foi minha opção de segundo turno. Foi escolha difícil, tendo em vista a minha descrença em relação não à sua pessoa, mas ao seu partido. É bem provável que, caso eleito, os riscos à democracia fossem de igual tamanho aos atuais, ainda que de natureza inteiramente diferente; quem sabe, até maiores – eis que me declaro aqui e para todo o sempre, falível nas minhas escolhas, como qualquer ser humano, porém, sem arrependimentos.

Em suma, a decisão está tomada; não creio que seja papel das forças democráticas, daqui em diante, dificultar as saídas engenhosas ou pródigas que possam vir a surgir, pois estamos bastante necessitados delas, mas, sim, se contrapor a tudo o que não tenha amparo na lei, que não seja justificado perante escrutínio público e que produza angústia, ignorância ou sofrimento – de preferência, contrapondo-se a tudo o que não mitigue esses três quando existirem – aos que aqui habitam.

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Eleições 2018

MARGEM HOJE ESTREITA (MAS NAVEGÁVEL)

O escritor Enrique Vila-Matas, em entrevista o outro dia na Folha (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/08/o-artista-deve-ser-nao-original-diz-enrique-vila-matas.shtml), fez uma afirmação muito interessante: a de que tanto o direito de se contradizer quanto o de cair fora deveriam fazer parte da Declaração Universal do Direitos Humanos. Dizia isso à luz de sua literatura, que é da órbita da “ficção crítica” e se apropria da repetição no intuito de, paradoxalmente, criar o novo, de sair de uma exigência “fossilizada” de originalidade.

Cair fora foi o que meu compadre Mário fez no começo deste ano, indo morar – assim como milhares de outros brasileiros – no exterior, levando consigo (e sendo levado por) mulher e filhas adolescentes. A tecnologia do mundo atual tem permitido que sigamos nos falando, ouvindo e vendo com uma frequência quase igual à de antes, de modo a que a saudade, numa imaginária Lei de Responsabilidade Amorosa, seja mantida abaixo de um “limite de alerta” – o mesmo ocorrendo com a extensa rede de outros fieis amigos que aqui ele deixou. Enfim, em tom de blague, digo que não duvido que o Mário em breve se torne amigo do Vila-Matas, que é espanhol e, imagino, vive logo ali, atrás do monte.

Mas é sobre esse outro direito humano universal reivindicado pelo autor de Dublinesca e Viagem Vertical, o de se contradizer, que gostaria de discorrer a seguir. E fazer isso sem abandonar o tema do amigo emigrado, posto que, dessa mexida, ainda restou o seu filho, meu afilhado, jovem e amável jornalista e vídeo maker, que optou por aqui ficar; e que, em recente e franco post do Facebook – e peço-lhe perdão pela inconfidência –, manifestou o sufoco que está sendo a escolha de candidato(s) para a próxima eleição. Noves fora os fundamentalismos, essa agonia é geral, eu diria, sendo ainda mais aguda para quem tem pouca experiência de vida. Meu conselho, no caso, é o de ser capaz de se assumir como navegante no Estreito da Contradição.

O que é que vem a ser isso? Creio ter condições de explicar, tendo em vista ser o que tenho feito, ultimamente, ao ter me disposto a contribuir com duas campanhas de candidatos, uma para senador, outra para deputado distrital, ambas do Partido dos Trabalhadores. Eu, que nunca militei (a não ser no âmbito sindical). E eu, que, cada vez mais, me sinto partidário, no espectro político, de um centro, em vez de uma esquerda – e que, em função disso, estou certo de que não votarei, nem para presidente, nem para governador, nos candidatos desse partido.

Votarei naqueles dois únicos candidatos petistas porque tenho tido a oportunidade de conhece-los mais a fundo – em especial um deles, Wasny de Roure, que, como presidente da comissão onde atualmente estou trabalhando, no âmbito do poder legislativo local, tem tido a sensibilidade e feito uso, por primeira vez ao longo de tantos anos de carreira nesse órgão, do meu potencial profissional. Tenho aprendido a admirá-los, em grande parte em função de ter notado neles um grau de humildade, bastante raro nesse e em demais meios, que faz com que consigam prestar atenção a seres tão inquietos e um tanto fora de padrão como eu. Claro está que não comungo com 100% de suas convicções – a algumas delas, até, sou definitivamente refratário –, mas isso não é empecilho para um apoio, quando posto numa balança em que também entram qualidades pessoais e histórico de vida e de posicionamentos. E quando se leva em conta esse dom de ouvir. (A outra candidata sendo Arlete Sampaio).

Às margens do Estreito da Contradição, o que encontrar? Muita “terra firme” que, no entanto, tem ficado cada vez mais claro ter o inconveniente de ser o berço de ódios. Ou será que são os ódios que acabam se cristalizando em ilusões de terra firme? Não sei, só sei que escrevo no dia seguinte de um atentado contra um candidato a presidente. Tudo indica que esse candidato, que, por sinal, é um dos principais patrocinadores do ódio, se recuperará – o que é de se esperar – e, inclusive, sairá disso reforçado – o que não é de se esperar –, mas o crucial a notar nisso é o quanto que o que já era espinhoso para um jovem eleitor e cidadão como o meu afilhado ganha contornos ainda mais assustadores.

Por isso, minha recomendação, que vale para mim inclusive, é a de não exigir demais desses postulantes, mormente quando se trata dos principais cargos, os ditos majoritários. Eles podem estar na mesma situação que nós eleitores, de terem que ser um pouco contraditórios, de não terem respostas engatilhadas para todo e qualquer problema. Claro: se estão se apresentando como líderes, haverão de ter programas, rumos claros que indiquem suas intenções e o firme empenho de que seguirão o que estão prometendo – tudo o que não precisamos, a esta altura, é de um novo estelionato eleitoral. Mas espera-se que também possuam a habilidade de contornar icebergs na medida em que eles se apresentarem, de aglutinar forças de modo a ter suficiente empuxo na hora que uma Moby Dick resolver dar uma estocada conclusiva.

Estamos todos num mesmo e único barco. Existe uma arte de navegar e, creio eu, temos gente capacitada para tal, o que equivale a dizer: lideranças, analistas, especialistas e generalistas e uma boa dose amor por esta pátria e pela vida. O que atrapalha, o que tem atrapalhado bastante, é a noção de que tudo tem remédio – seja esse as armas, seja a utopia (que, não raro, desemboca no primeiro). Não tem: nós é que temos que inventar. Aprender a trocar, desde pequenos, a roda em pleno movimento – e a nos conhecer mutuamente.

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O ocaso da esquerda

CAMINHOS CRUZADOS

Meu trajeto pro trabalho, todo dia, possui um grau de civismo difícil de ser equiparado. Passo por três palácios (Planalto, Justiça e Buriti) um Congresso Nacional, uma esplanada inteirinha de ministérios, dois tribunais (de Contas e de Justiça do DF, para não falar do Supremo, que avisto de longe), duas praças cívicas e dois memoriais (JK e Povos Indígenas) e, só então, adentro a Câmara Legislativa, o parlamento local, onde “ganho o meu pão”. Mas civismo não é só o lado estatal, dos poderes instituídos, com seus choferes e cerimoniais; ele também engloba aqueles que ralam dentro de ônibus apinhados, os que vendem pastilhas de menta no sinal e os que dormem debaixo de viadutos ou marquises. Vejo-os igualmente, além dos rostos dos que, como eu, manejam manivelas, pedais e volantes nos bancos dos seus automóveis até os estacionarem nas garagens das repartições ou conjuntos comerciais.

Foi em meio a isso tudo que me veio à mente, o outro dia, o Chico Buarque e a sua obra musical. Uma obra, como todos sabemos, vasta, onde figuram inúmeras pérolas da canção brasileira. Um verdadeiro colar, de onde jamais se poderia tirar a canção sobre o pedreiro que cai de cima da construção, morre e, ainda, atrapalha o trafego. Uma ode talvez insuperável a esse outro lado da moeda cívica a que me refiro acima; o resultado admirável de uma inspiração poética muito próxima dessa que me ocorre nesse trecho, inicial, das minhas manhãs.

Diante dessa proximidade, surge-me a pergunta: o que é que me distancia desse compositor, que assume, na atualidade, uma linha de frente de defesa do lulismo – a ponto de muitos dos que titubeiam nesse tema o terem como espécie de fiel-da-balança na hora de se verem forçados a assumir uma posição? Por que não o acompanho, também, no quesito visão da política? Vem-me à cabeça o termo “festa”: a figura de Chico Buarque seria a quintessência daquilo que ficou conhecido como “esquerda festiva”, um termo que eclodiu numa época em que havia, para a esquerda, uma outra alternativa, uma outra forma de existência: a luta armada.

Hoje, a luta armada – felizmente – é algo descartado. A maior prova disso – e, de quebra, de que a história de “golpe” no caso da queda de Dilma Rousseff não passou/passa de uma tremenda bravata – foi o fato de que, durante o impeachment, a própria chefe das Forças Armadas, uma ex-guerrilheira, sequer cogitou de algo como uma decretação de Estado de Sítio, um instrumento, aliás, constitucional – e legítimo, frente a uma ameaça real à ordem democrática. Teria restado, para a esquerda, nada mais do que sua vertente festiva?

Tendo – ainda nesse meu trajeto rumo à “roça” – a achar que sim; e, em seguida, me pergunto se não será essa a fonte principal da minha reticência ao filho do Sérgio Buarque de Holanda e, por tabela, ao lulismo. Estranho, porque, até onde sei a respeito de mim mesmo, sou alguém bastante afeito a festas – ou, ao menos, nada tenho contra! Onde estará, efetivamente, o cisma? Creio que é aí que a coisa – a minha reflexão –  começa a ganhar legítimo “corpo”: a questão não está no adjetivo, “festiva”, mas no próprio substantivo, a esquerda.

Acho que a esquerda tal qual se entende nessa expressão que a vincula à festa, essa esquerda que vive nos anos 1960 mas que insiste em frequentar a festa sempre hic et nunc do pensamento, está, na verdade – e apesar da visibilidade e hegemonia que possui na academia e na para-academia –, morta. Intelectualmente morta, tanto do ponto de vista teórico quanto daquele, prático, que diz respeito ao discurso.

No que tange ao primeiro, acredito que o embate esquerda-direita, tal qual se configurou a partir de Marx, já deu o que tinha que dar: não tem a capacidade de nos levar a canto nenhum mais. O socialismo real nos deu exemplos fartos de que, em nome de valores bastante belos e importantes, o que acaba por emergir das suas revoluções são estruturas de poder tão medonhas quanto (ou mais do que) aquelas que os comunistas vivem a denunciar. Uma nova grade de leitura da política necessita vir à tona. De fato, creio que ela já veio, através de Michel Foucault: foi o que tentei evidenciar em minha tese de doutorado, que está completando, nestes dias, dez anos de sua defesa.

No seu pensamento, que tem o exercício do poder como fulcro, Foucault ensaiou o deslocamento do eixo do entendimento da política para aquele, ubíquo, que separa os governantes dos governados. Os primeiros sempre a terem que ser suficientemente convincentes para estarem nesse papel; e, para tal, apoiando-se fortemente em saberes (variáveis no tempo, o que não os distancia muito de meras “narrativas”), dentro de algo a que ele deu o nome de governamentalidade. Os segundos sempre a portarem consigo a chispa da liberdade, por meio da capacidade crítica – daí, por exemplo, que Foucault nada tivesse contra a injunção kantiana que, aos súditos do rei de plantão, recomendava: “obedece; e assim poderás criticar o tanto que quiseres”.

No que tange ao segundo ponto de vista, parece-me que a utopia socialista, perpassada pelo valor da igualdade, vem sofrendo um progressivo descarrilhamento frente a um mundo onde a diversidade já se instaurou de forma irreversível. Uma diversidade que se calca em direitos que, malgrado tudo, só emergiram no contexto onde surgiu o capitalismo: os regimes, democráticos, ditos liberais. Há coerência nisso, bastando, para se dar conta dela, que se tome a doutrina liberal a sério – tal como fez Foucault, que dedicou a ela um ano inteiro de pesquisa e ensino no Collège de France – já que, tendo a concorrência como princípio regente e a noção de que não existem valores absolutos, nada diz sobre a obrigatoriedade dos indivíduos terem que competir nos mesmos e limitados campos de atividade. Esses podem ser inúmeros, nada impede que se diversifiquem ad infinitum; e foi a partir disso que a economia mundial conseguiu dar o salto que deu e não para de dar.

A utopia mais interessante nos dias atuais – uma utopia que está em via de se concretizar, se formos olhar para o que acontece atualmente no âmbito da prática pedagógica em alguns países ou localidades do mundo – reside no reconhecimento da singularidade dos sujeitos. Nas comunidades de aprendizagem, por exemplo, tal como propostas por um José Pacheco (um pensador não está, de modo algum, sozinho) – uma das quais se inicia em breve bem perto de onde escrevo – trata-se, ao contrário do que se propunha nas pedagogias dos séculos passados, de formar pessoas, por meio do respeito às idiossincrasias – não modelos ou padrões a serem seguidos ou contingentes a serem controlados com maior facilidade.

Recentemente, organizei um seminário a respeito desse tema: o reconhecimento de diferenças na escola. Convidei brilhantes estudiosos de duas questões centrais dentro dessa perspectiva: gênero e relações étnicorraciais. Foi algo revelador do ponto de vista daquilo que está em jogo e que é o fim da violência e do preconceito (algo politicamente muito relevante). Mas também ficou bastante claro pra mim o quanto a pluralidade é algo de difícil digestão para os representantes sindicais, para os militantes de esquerda, também convidados para o debate.

Alguns dos próprios pesquisadores, por um lado tão agudos e imbuídos na defesa da diferença, acabam cedendo a esses últimos e suas afirmações que priorizam, como elemento a ser combatido, a “violência de classes” frente a esses outros tipos específicos de violência. Eles, estudiosos, aquiescem, aceitam uma hierarquia teórica desnecessária, mesmo quando não está 100% provado (muito pelo contrário, como se depreendia do que alguns deles mesmos acabavam de mostrar) que essas formas particulares e definitivamente palpáveis de violência tenham vínculo com esse outro gênero todo-englobante e de caráter teórico. A sensação que fica é a de que uma natação intelectual intensa e muito promissora – porque em sintonia com a utopia que surge do “chão de escola” – pode estar sendo feita pelos pesquisadores da diferença, para virem, em seguida, a morrer nas praias do discurso massificador e heteronomista de uma esquerda agonizante. Um discurso tão obtuso quanto o da “escola sem partido”, igualmente heteronomista – e que, no fundo, era o vilão implícito do seminário.

Uma pena. Porém, a lição que fica, ao menos pra mim, é a de que a intuição foucaultiana de conhecer os pormenores do liberalismo – e, inclusive, do neoliberalismo – à luz da governamentalidade, estava correta. O neoliberalismo conclama a um passo adiante na direção já aberta pelo liberalismo, de deixar que a lógica da concorrência prepondere na sociedade, expandindo os mercados: trata-se que também o Estado passe a ser regido por esse princípio. Não implica na não-existência do Estado – como, de resto, é muito propagado – mas na eficiência/eficácia/efetividade desse. Os governantes tendo que provar que estão à altura de lá estarem; caso contrário: tchau. Acho que a academia não deveria temer o liberalismo; assim como a escola, com seus pais e políticos incluídos, não deveria temer (ou “ter pânico”, como foi dito, de) abordar as diferenças. Disso, poderia surgir algo como uma esquerda já não mais defunta, mas vigorosa, a ser alegremente experimentada.

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O último Rushdie e a nossa política

A PROPÓSITO DO NOSSO DESALENTO

The Golden House, o mais recente – recém-lançado – romance do escritor anglo-indiano Salman Rushdie, talvez seja a sua maior realização literária até o momento. Sendo seu assíduo leitor, essa afirmação tem um peso pois, afinal, seus livros têm sido um dos grandes deleites da minha vida. Tinha pra mim que seria difícil ele conseguir superar a sua grande “sinfonia”, Os filhos da meia-noite, escrita quando ainda era um autor desconhecido, quase estreante. Pérolas, em quantidade, vieram depois (O último suspiro do mouro, O chão que ela pisa, Shalimar, o equilibrista, A feiticeira de Florença), bem como o atrevido Versos satânicos, que lhe rendeu a mais estúpida das sentenças – de morte! – por parte de uns poderosos globais que lá viram a sua crença ofendida. Coisas nem tão boas também saíram de sua pluma, como creio ter sido o caso do seu anterior Dois anos, oito meses e 28 noites, ou Luka e o fogo da vida.

O que há na prosa de Rushdie que tanto me encanta? São diversos elementos que se entrecruzam o tempo todo. Ele sabe muito – e nos ensina – sobre o amor, em especial aquele que existe entre um homem e uma mulher. Sabe como ninguém que a sedução é a regra do jogo da vida e que ela, feita de gestos e, principalmente, de palavras, está presente também no momento em que se abre um livro e se começa a sua leitura. Também tem a coisa do desterramento, de como culturas inteiramente estranhas umas às outras se veem obrigadas, por meio dos seus egressos, a se entender porque agora habitam um mesmo e sempre renovado “mundo”.

Mas eu diria que em primeiro lugar está a sua capacidade (imaginativa, mas nem por isso fantasiosa) de nos evidenciar os centros nevrálgicos da atualidade – ou de antanho, como foi o caso em A feiticeira de Florença –, onde precisamente circulam os poderosos. Pipocam em suas páginas personagens que decidem nesse nível concreto que é o das finanças, da produção: banqueiros, empresários, diplomatas, astros do showbusiness, gente que detém, porque precisa, toneladas de informação – um paralelo pode ser feito com a matriarca do filme de Carlos Saura, Mamãe faz cem anos, que, apesar de acamada, sabia de tudo o que ocorria em sua mansão, com seus filhos, netos, noras e genros. Essa elite, por sua vez, não-raro se depara com o mundo do crime, onde despontam tipos que, igualmente, não-raro, se tornam “elite”. (Penso que é bem possível que o desvendamento desse tipo de promiscuidade, estendido ao caso de uma religião em específico – e note-se que se trata do islã, a religião sob a qual Rushdie foi criado – é o que tenha gerado tanta ira por ocasião de Os versos satânicos.)

E em meio a essa fantástica roda giratória sempre há a figura, classe-média, de um narrador. Classe-média porque é onde vigora, de início, uma certa crença iluminista, sempre em contato com uma profissão, um esteio seguro a partir do qual olhar para o que acontece – afinal, narrar já é uma forma de buscar uma ordem, uma compreensão pra esse caos, pra essa voragem do poder.

No caso específico de The Golden House, esse narrador classe-média é um film-maker nova-iorquino, descendente de belgas, que enxerga, na chegada de um magnata oriental e sua família – os Goldens – ao seu micro e exclusivo bairro na ilha de Manhattan, a chance de arregimentar as peças de uma história que virará, possivelmente, seu primeiro longa-metragem. Ele então se infiltra, feito um espião, nessa mansão que acaba se revelando – confirmando o seu faro – um poço de mistérios e dramas pessoais. Só que não, porque, lá pelas tantas, é claro, ele próprio se vê engolido na voragem (trata-se, aliás, de um dos pontos altos do livro, quando chega a autoquestionar sua legitimidade enquanto formulador de uma verdade, digamos, isenta, cogitando em procurar a ajuda de um psi qualquer, talvez abrindo mão, assim, da própria condição de narrador ou dono-provisório-da-verdade).

A crise pessoal vivida por René, esse jovem cineasta, filho de um casal de (impagáveis) professores universitários e nova-iorquino típico do ponto de vista do seu progressismo – uma forma de ver o mundo mais disposta a considerar os diversos aspectos de tudo o que se apresenta como novo – corre em paralelo à eleição de um “palhaço tenebroso” obviamente – porém não nominalmente – inspirado no reconhecidamente insano Donald Trump, o Curinga do desenho de Batman, para a  presidência dos EUA. Essa sacada simétrica talvez seja o que dá a essa última criação de Rushdie o traço da obra-prima: da mesma forma que o narrador corre o risco, ao aderir ao mundo corrompido dos personagens, de se perder de vez, essa nação que, tudo indica, seria a nova casa desse escritor anglo-e-agora-americano-também-indiano, também se encontra, com essa eleição, à beira de um precipício.

Os mecanismos que levaram Trump ao poder – dentre os quais desponta a apatia, reiteradamente lamentada, dos 90 milhões de votantes que não foram às urnas, mas também o impulso dos 60 milhões que nele votaram por conta, precisamente, de sua loucura, bem como a profusão, nos meios de comunicação, de “manufatrovérsias” –  possivelmente não tenham sido descritos, em lugar algum, com tamanha propriedade como agora faz Rushdie nesse romance. A sua escrita, portanto, à parte o fato de contar uma sensacional história – que nada deixa a dever aos seus demais grandes livros –, torna-se uma demonstração de que não cabe abandonar a via da razão: somos ainda capazes de compreender o que acontece e, em assim fazendo, de evitar a total escuridão que se apresenta. É, também, um manifesto!

Mas, para além de dar a conhecer, quase que em primeira mão e de forma tão resumida, essa contundente obra de ficção, o que me leva a tematiza-la diz respeito à nossa política, brasileira, atual, ao estado das coisas neste nosso país. Em especial ao sentimento bastante generalizado de desalento que corre nas conversas das redes sociais do mundo virtual ou não. Um desalento que ronda as eleições gerais que ocorrerão dentro de dez meses, mas que se origina dos últimos tempos, no mínimo, de mensalão e Lava-Jato.

Face ao drama presente nas páginas do livro que acabo de, apressadamente, resenhar, ousaria dizer que não vejo justificativa para um tal desalento. Explico: tanto na vida pessoal do narrador quanto na da nação norte-americana, a ausência da elementar verdade é o que arrisca pôr tudo a perder. A certa altura, o narrador descreve o mundo onde esse Curinga/Trump se torna governante como uma “bolha” em que “conhecimento era ignorância” e onde “o sarcasmo era divertido, mesmo quando o que era chamado de sarcasmo não era sarcástico, e mentir era divertido, e o ódio era divertido, e a truculência era divertida, e a atemorização alheia era divertida e a data era, ou quase era, ou poderia em breve ser, se as piadas viessem a funcionar conforme o previsto, mil novecentos e oitenta e quatro”.

Ora, por mais triste que seja a profusão de propinodutos, em todas as direções, a que já nos acostumamos no nosso noticiário diário, o que temos vivido nos últimos anos na nossa esfera pública não corresponde justamente ao esvaziamento de uma bolha com características muito próximas a essa? O nosso mundo não beirou se condensar em algo parecido à aprisionante, aterrorizante realidade descrita por George Orwell em 1984 – e a qual Rushdie parafraseia nesse trecho acima? Não temos hoje nossos pés mais no chão – por mais que esse seja sujo – do que quando vivíamos grandes, lambuzantes, derrisórias, mentiras? Não se tratará de fazer como o narrador desse The Golden House que, já numa altura avançada de sua narrativa, pede a licença para se ater à força e a algo como a resiliência (dailiness) da “vida tal qual ele a havia conhecido até então”, bem como para “convidar o vitorioso e gigantesco rei dos quadrinhos de cabelo esverdeado e a sua franquia cinematográfica de bilhões de dólares a sentar-se nas últimas fileiras e deixar que as pessoas de verdade toquem o bonde”?

  • Obs.: Traduções minhas.
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Sonâmbulo, por Andrés R. Ibarra

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Super Só & Outros Videoclipes, de Miriam Virna e Cia.

SUPER ACOMPANHADA

São bem diversos os caminhos do músico e do ator ou diretor teatral. Teatro envolve outras pessoas, grupo, ao passo que o músico pode tranquilamente sobreviver a uma rotina solitária; como se, ao ouvir o que sai da sua interação com um instrumento – que pode ser a própria voz –, esse último já conseguisse um suficiente retorno para “seguir em frente” em sua pesquisa. Claro que músicos também formam grupos, sejam bandas ou orquestras: a questão é que, mesmo nesses casos, o que cada um faz depende muito pouco do aporte do outro, o resultado do encontro se concentrando no som – e não na pessoa (ou no corpo) de cada performer. O espaço cênico é um espaço restrito, escasso, que se altera a qualquer piscadela do ator, ao passo que o do som não tem limites, acontecendo na “vastidão” da cabeça de quem o ouve.

Feito o registro dessa distância, gostaria de chamar a atenção para o espetáculo Super Só & outros videoclipes, em que sua autora e codiretora (além de atriz), Miriam Virna, nos apresenta o fruto, extraordinário, de um salto que ela se atreveu a dar entre um e outro desses caminhos artísticos.

Miriam é formada em artes cênicas e, mais significativo que isso, alguém que vive de teatro, que tem uma trajetória teatral de sucesso, tanto como atriz (inicialmente) quanto como diretora e dramaturga. Já encenou inúmeras peças em diversas demonstrações de domínio do fazer teatral. Não sei se ela concordaria – declaro que se trata de uma amiga – se eu dissesse que ela é principal sucessora de um gigante do teatro brasiliense, Hugo Rodas, mas o fato é que boa parte do que encenou ao longo do seu percurso até essa peça (que está em cartaz até dia 29 no Teatro Garagem) levou algo da abordagem e do arsenal de recursos desse genial diretor uruguaio, aqui radicado.

O teatro dionisíaco de Rodas sempre teve conexão com a música, mormente a partir do seu aspecto rítmico, provocador da dança – a tal ponto que muitos o consideram, antes de tudo, um coreógrafo. Miriam Virna explorou essa conexão à saciedade em sua obra pregressa; sempre, porém, inserindo nela um toque pessoal de humor, algo a distanciar sua produção de um certo pendor ao drama presente na obra do seu mestre: necessidade de diálogo com o presente, o atual, o vivo, mais do que com o eterno ou arquetípico.

Super Só conserva toda essa verve. Poderíamos, porventura, destrinchar esse novo espetáculo nesses aspectos antes vigentes – dança, canto, humor, contemporaneidade, algum deboche – sendo acrescidos às geniais projeções de João Angelini – codiretor desse espetáculo junto, ainda, com William Ferreira – numa parceria que já vem de algum tempo. Poderíamos igualmente elencar outras parcerias reeditadas com outros grandes profissionais locais (Marcos Barozzi nos figurinos, Dalton Camargos na iluminação). Não poderíamos, em momento algum, deixar também de notar o trabalho com atores monstruosos (por mais que muito jovens), tal como é o caso de Roberto Dagô e Elisa Carneiro. Em suma: teatro a pleno vapor.

Entretanto, creio que não conseguiríamos entender, na sua plenitude, esse espetáculo se não nos déssemos conta de que Miriam Virna, a certa altura de sua andança, aderiu à música, tornando-se uma compositora. Talvez, adesão não seja bem a palavra certa, dado o fato de que ela estudou música quando mais nova; digamos, melhor, que se trata de uma aceitação agora plena e definitiva. Super Só tem, no seu subtítulo, a denominação de videoclipe; isso porque, no fundo (ou em grande parte) o espetáculo como um todo se trata da encenação de diversas canções, por ela compostas. Tudo bem que há uma trama, que há diálogos e personagens; porém, não se trata de uma peça: a dramaturgia presente é, eu diria, a matéria que escorre, quase como um excedente, das canções, desse conjunto que é estritamente musical.

Canções às quais é preciso dar atenção. São autossuficientes e geniais. E respondem a um universo único, de forma única. Algo que, na minha opinião, só pôde vir à tona a partir da vivência que Miriam teve, por alguns (últimos) anos, fora de Brasília, no Rio de Janeiro. Note-se: a peça (que não é peça) acontece em Brasília. Contudo, sua visada, humana, é uma que dificilmente é acessível a um(a) filho(a) desta cidade vocacionada ao sobre-humano, ao super.

Super Só é um super-herói que, como me explicou a autora antes que eu o assistisse, paira, como algo virtual, ao longo do espetáculo. Eu já conhecia a canção homóloga e sabia tratar-se de alguém com o terrível dom de congelar o sentimento alheio, de destruir o gozo da vida – essa decorrência natural do encontro entre pessoas. De onde saiu esse terrível ser, qual a realidade a que corresponde, do quê é a expressão, o fruto? Para mim está claro que a resposta está nesta cidade tão ordenada, tão repleta de caixas, setores.

Brasília é cidade difícil, em particular para as artes – que precisam de burburinho, de público. Porém, volta e meia daqui surgem artistas, criadores, destinados a nos marcar, por gerações a fio. Pense-se num Renato Russo (a quem tive a oportunidade de conhecer). Miriam Virna, com o seu Super Só, demonstra estar à altura desse ícone da música pop brasileira. A correspondência entre ambos não está, contudo, meramente no fato da mesma origem mas sim no próprio campo em que ambos jogam – ou jogaram, no caso dele – e que, mais do que a música ou a poesia é, como deixa claro a narradora de Super Só, o campo da ficção, da imaginação perpassada pela palavra. Uma diferença, porém – e uma vantagem significativa –, é que ela, por força do teatro, está cercada de gente (e que gente!).

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A Boa Política, de Renato Janine Ribeiro

SEGUINDO EM FRENTE

Renato Janine Ribeiro está com livro novo na praça. Essa é uma informação que concerne a todos os que buscam boas reflexões a respeito do presente, daquilo que cabe ser feito com a liberdade de que se dispõe, seja coletiva, seja individual. Posto de outra forma, a todos os que têm interesse em política e vislumbram alguma conexão entre esse “universo” e aquele das ações individuais. O título do livro já atiça, bastante: A boa política – ensaios sobre a democracia na era da internet (Companhia das Letras, 2017). O que se segue é uma breve resenha dessa obra.

Porém, tenho antes que avisar que, incluindo-me nesse grupo acima, de virtuais interessados, a notícia desse novo livro também me atinge no aspecto particular de que esse autor foi alguém que já teve uma grande importância na minha vida, tendo aberto a porta para meu doutorado em Ética e Filosofia Política no Departamento de Filosofia da USP; uma experiência das mais ricas, mas que acabou se revestindo de frustração na medida em que, no meio do caminho, nos desentendemos quanto às obrigações entre um orientador e um orientando: até onde sei, ele nunca chegou a ler minha tese, que acabou sendo defendida e aprovada “com distinção” por uma banca em que o posto que seria o seu acabou sendo ocupado por um outro professor. Esse episódio aconteceu há cerca de dez anos: tempo suficiente para reacender um interesse que, tendo sido dos mais altos, subitamente se extinguiu, em função do ocorrido.

Janine Ribeiro, por sua vez, assumiu, por um curto período, o Ministério da Educação no final do primeiro mandato de Dilma Rousseff, bem como uma das diretorias da CAPES, por mais tempo, ao longo do governo Lula. Esse é também um dado que necessita ser lembrado tanto por quem vá ler, de forma impessoal, os comentários que teço a seguir, quanto por aqueles que possam se importar com o que pode haver de pessoal, de minha parte, neles. Os que me acompanham nestas páginas e nas redes sociais, bem como no trato diário e direto, creio que já saibam da minha desaprovação tanto desse governo quanto do de seu antecessor e artífice, Lula – e a consequente aprovação da saída dessa da Presidência. A princípio, se já tive um alinhamento político e ideológico com o autor de A boa política, hoje eu me veria no campo daqueles que não veem suas colaborações governamentais com bons olhos.

O espírito, portanto, inicial de leitura desse livro, como pode facilmente se concluir, foi o de um considerável “pé atrás”. Esse espírito, entretanto, talvez seja aquele com que se deve ler toda e qualquer obra. É isso o que faz um bom leitor – e é isso o que todo autor verdadeiramente comprometido com o que escreve, busca.

O impeachment de Dilma Rousseff, com tudo o que o cercou – aquilo que se convencionou chamar de “conjunto da obra”, a corrupção toda que os governos do PT permitiram que se instaurasse, bem como os crimes de responsabilidade que ela de fato cometeu – configurou um grande quebra-cabeças intelectual a que todos fomos submetidos no passado recente. Um termo chave emergido dessa provação coletiva foi e continua a ser o da “honestidade intelectual”. Honestidade essa que se confunde com uma certa liberdade do pensar e a coragem para verbalizar as conclusões a que se chega: carecemos dela para atravessarmos o mar. No caso do livro de Ribeiro, a pergunta quanto à sua presença é inescapável na leitura a ser feita: consegue o seu autor se manter minimamente viável, crível, tendo frequentado, como frequentou, esses governos desonestos? Essa preocupação se apresenta a cada curva dessa imbrincada coletânea de ensaios, tanto na via do leitor quanto, parece ter ocorrido, na do escritor.

Sim, existe o argumento de que os ensaios foram escritos ao longo e cobrem majoritariamente um período anterior ao da “crise”. Contudo, é explícito o propósito de que eles componham um conjunto a ser lido, também, agora, de que falem a um presente (todo um trabalho de atualização foi feito nesse sentido). E eles não só falam, mas também se atrevem a apontar as diretrizes para um futuro.

As questões da liberdade e da coragem quando ligadas ao pensamento são deveras importantes: serviram-nos a todos, nos últimos anos, naquilo a que o autor chama de fog of war, as brumas da guerra ou, se quisermos, a corda bamba. Mas não só a nós: também a esse autor, posto que o livro todo possui aquela qualidade que é uma marca registrada da sua produção: a capacidade de ventilar uma grande gama de temas e hipóteses de forma destemida e inteligente, recorrendo, para tal, a todo o cabedal de conhecimento da nossa cultura ocidental. Impressiona a capacidade desse autor de promover, ao longo dos seus ensaios, deslocamentos entre campos e épocas do conhecimento, ao mesmo tempo em que nunca se deixa tomar pela erudição ostentatória: seu foco sempre é a política; apenas, ele a submete a uma máquina com muito mais recursos do que os de uma ciência ou uma tradição filosófica particular. Uma máquina que estica, encolhe, amassa, repuxa, joga pra um lado e pro outro, faz quicar e também rodopiar esse objeto, essa circunstância perene ao homem.

Pensadores, em meio a brumas, também se enganam: aqui e ali há um lampejo de reconhecimento disso – na menção feita a Thomas Jefferson, que tendo lançado as bases da democracia norte-americana, ainda assim foi bastante desumano no trato com os seus criados (capítulo 5); ou, então, quando, admitindo-se um pensador da democracia, reconhece que essa pode errar, mas, ainda assim, ter validade (capítulo 12).

Olhando retrospectivamente, quais são as credenciais de Ribeiro no campo do livre-pensamento? Talvez a mais evidente – e uma que eu, sociólogo oriundo da mais aguerrida Escola de Frankfurt, custei a captar – seja o fato de que ele jamais foi um pensador antiliberal. O livro atual, para que não restem dúvidas, demonstra isso com todas as letras: reconheça-se, diz ele, ao liberalismo, ser o porta-voz por excelência da queixa pela igualdade de condições. Uma visão assim adulta do liberalismo, convenhamos, já constitui por si só uma distinção em meio à vasta incompreensão – um rigoroso tabu, na verdade – que a academia ordinariamente impõe a essa linha de pensamento.

A receita de Ribeiro, destilada ao longo dos anos, entretanto, chama para uma eventual confluência entre essa almejada igualdade de condições que, como ele diz, deveria se dar no início do processo de produção social, com uma pensada para acontecer, na matriz socialista, no seu final. Ele enxerga isso como possível – numa mescla entre concorrência e colaboração –; e um dos eixos a dar suporte à política que ele entende como boa (o outro sendo o que se estende entre democracia e república).

Mas há também a questão das liberdades individuais, dos direitos humanos – normalmente antepostos a um poder, seja esse o da lei ou dos desígnios dos tiranos. Pela via do estudo de Thomas Hobbes, o pensamento de Ribeiro sempre se manteve em marcha, sempre rendeu frutos. A separação entre direito e dever (ou lei) que esse filósofo da soberania estipulou como essencial, Ribeiro a introjetou, mas somente para poder pô-la, permanentemente, em perspectiva, como se faz com uma ferramenta de trabalho. Hoje, com a consolidação cada vez mais irreversível dos direitos individuais, o espaço para o que diz respeito a todos – e que envolve alguma dose de entrega pessoal, de abdicação de liberdade, de obrigações – se vê sob o signo de uma obsolescência, de acentuado refluxo. Aí reside um perigo; e eis, a meu ver, um dos principais recados que Ribeiro, na senda de Benjamin Constant (que se deu conta disso já no século XIX), nos traz.

Caminhamos atualmente para uma forma de vida em que muito pouco nos obriga a pensar aquilo que podemos fazer em conjunto. No modelo liberal, a defesa do indivíduo – tão importante como é e tão em sintonia com a democracia naquilo que ela tem de ligação com o desejo, força motriz da ação – acaba por fazer com que nos sintamos satisfeitos com o quase exclusivo (não são palavras desse autor) olhar para o nosso próprio umbigo; isso coloca em risco a democracia em si. A boa política, conforme a define Ribeiro, se calca no abandono do preconceito. No entanto, na medida em que deixamos de estar ligados uns aos outros, de nos frequentarmos e nos depararmos coletivamente com o futuro (ficando satisfeitos meramente com o fato de que pagamos impostos) tendemos – e isso não é um raciocínio que ele levante, mas que surge a partir do que ele coloca – a nos alimentar desse mau componente a ser evitado – e que está presente, naturalmente, em cada um. O espaço da ágora está cada vez mais restrito, ainda que possuamos uma ferramenta tecnológica tão propícia à troca como a internet: o “homem sem interlocução”, “destinatário único de mensagens que não lhe permitem dialogar com outrem” (Capítulo 6), que ele cogita, assusta!

Acho que essa é uma questão de extrema validade para o momento presente no nosso país. As tribulações advindas dos governos Lula e Dilma têm estabelecido uma relativa clareza quanto à necessidade de retorno a uma política econômica pautada pela responsabilidade com as contas públicas. Vislumbra-se hoje um modelo econômico que dialogue com as forças do mercado, anulando o capitalismo de compadrio que se instaurou ao longo de mais de uma década de governos petistas[1]. Mas isso implica em que não tenhamos modelo político algum, projeto coletivo de qualquer natureza?

Não sei se comungo com a quarta agenda que Ribeiro propõe (capítulos 17 e 18), principalmente naquilo que ela se concebe como parte de uma história de agendas hegemônicas sucessivas da nossa jovem democracia. Essa história me parece sujeita a questionamentos. Mas estou de pleno acordo em que o Estado brasileiro necessita urgentemente se rearticular enquanto promotor ou facilitador de serviços (educação, saúde, segurança, mobilidade, bem-estar) que não são matéria estranha à democracia em si. Essa ideia, aliás, de um entendimento mais amplo sobre esse regime, em que se vejam incluídas as demandas que ele chama de sociais – não só aquelas da formalidade do rito político –, de caráter plural, é outro ponto forte da teorização empreendida por Ribeiro, presente em diversos capítulos (a exemplo dos de número 2, 3, 7, 11, 13 e 17). Elas apontam para uma questão perturbadora (num bom sentido): a de se a política pode ter para si, em algum instante, o modelo da festa, carregar mais a marca da alegria do que a do aborrecimento.

Essa questão está posta no ensaio “O Brasil e a democracia de protesto” (Capítulo 17), onde Ribeiro analisa os protestos de meados de 2013, tão inesperados a ponto de ele compará-los com os de maio de 1968 na França, mundialmente reconhecidos como tal. Não haveria como um livro sobre a democracia nos dias atuais, sendo escrito no contexto brasileiro, não abordar esses episódios que, por certo, engatilharam a crise política que lhes sucedeu. Confesso que temia, nessa leitura, topar com uma interpretação do tipo “as classes médias reagindo diante da mudança na estrutura de classes, quando os mais pobres passaram a usufruir das mesmas benesses” (Fernando Haddad). Afortunadamente, a interpretação dada por Ribeiro não foi por aí, e sim pela compreensão da queixa generalizada (inclusiva das classes médias) por uma destinação mais eficaz dos impostos pagos. Ou seja: um problema relativo aos serviços oferecidos pelo Estado; não uma questão de “fascismo” ou falta de generosidade da classe média (Ruy Fausto). Bravo!

Um outro ensaio que desnorteia (igualmente num sentido bom) é o que se intitula “Pode existir uma utopia pós-moderna?” (Capitulo 10). Se formos ver, nesse ensaio há sintonia com o que é proposto no tocante à alegria na política como fruto do exercício, tão próprio a uma democracia em sentido ampliado, do que é múltiplo: a partir de Thomas Morus, formulador de uma das duas daquilo que ele chama de aberturas (no sentido enxadrístico) da modernidade política, e da sua Utopia, caracterizada pelo forte planejamento, ele se pergunta se não seria hoje possível um cálculo que estabelecesse um limite máximo de horas de trabalho que um indivíduo necessitaria cumprir ao longo da vida para que todos desfrutassem(os) de um padrão aceitável. Seriam bem menos horas do que as atuais, dando-nos uma carga considerável de tempo livre, de liberdade.

Esse seria, contudo, ainda, um projeto “moderno”. A qualidade pós-moderna por ele aventada consistiria na extensão do raciocínio libertário no sentido de que esse (novo) total de horas poderia muito bem ser cumprido com ocupações diferentes: por que há de haver a obrigação de termos, ao longo da vida, uma única profissão? Algo próximo também poderia se dar no tocante a nacionalidades ou a estados civis: “identidades podem ser, não digo provisórias, porque elas se assumem, provavelmente, como eternas enquanto durem – mas sucessivas, sem maiores dramas.” A quebra do padrão identitário, prossegue Ribeiro, talvez constitua hoje uma ameaça muito maior para a estrutura de poder que sustenta o capitalismo do que uma queda produtiva ou nos lucros, posto que as identidades facilitam o controle. Pergunto: tem como ir mais longe do que isso no pensamento?

Mas se fosse para apontar o principal triunfo do pensamento de Ribeiro eu apontaria para algo que aprendi nos anos em que com ele me relacionei, a lição-mor, digamos, que tirei dessa nossa aproximação e que diz respeito ao sentido da política. Essa lição, que ficou e ficará para sempre comigo, está resumida no quase final do ensaio “Pode haver uma política que não seja democrática?” (Capítulo 12), quando esse autor assim enuncia:

“Quando dizemos que a democracia é o regime da linguagem, aceitamos, portanto, que as pessoas dialoguem, discutam, deliberem, mas o que mais aceitamos é que ela não seja o regime da verdade. Pois renunciamos à pretensão de uma política que diga a verdade. A verdade se refere ao que é, foi ou será. Ora, não há política sem a dimensão do futuro, que sempre é o campo do inseguro. Não temos certeza do que virá. Podemos saber o que é, não o que não é. A política é lugar da opinião, não da verdade – de crenças e valores, mais do que de conhecimento. Evidentemente, os conhecimentos, em especial a ciência, podem ajudar a política, mas o verbo é exatamente este: ajudar. O saber tem, na política, um papel subordinado.” (Grifos do autor).

[1] A certa altura, aliás (Capítulo 8), Ribeiro menciona, elogiosamente, a atuação do BNDES sob Dilma Rousseff – ela teria inspirado um livro no qual ele vê méritos –, um grande escorregão, a meu ver. Ao mesmo tempo, contudo, logo em seguida ele lamenta que a inclusão social (um forte trunfo petista que se faz presente ao longo do livro) tenha se dado, nessa proposta, pelo viés preponderante do consumo (em detrimento da educação e da cultura).

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Sobre o costume de acampar

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Recentemente, retomei o acampamento em minha vida. Uma atividade que estava há anos relegada, ainda que tenha feito parte, desde a mais remota infância, da minha formação como ser humano. “Nunca acampei”, ou, então, “acampei somente uma vez, pra nunca mais”: essas costumam ser as reações mais comuns que se ouve ao mencionar a intenção de ir se instalar em algum camping. Em geral, evoca-se um tal “conforto” que se estaria perdendo ao fazê-lo, algo que – conforme pretendo esclarecer logo abaixo – reputo ser um mito. Essa alegação se tornando válida, contudo, impede que a conversa a respeito adentre os demais benefícios, até mais profundos, que essa atividade proporciona.

Evidente que acampar é algo que se fará nas férias ou feriados ou folgas. Época de descanso. Daí que se veja com pruridos isso de, em primeiro lugar, preparar toda a tralha a ser levada e que consiste em algo equivalente a um novo lar, indo da barraca em si aos utensílios de cozinha (fogão e, eventualmente, geladeira incluídos), passando pelos sacos de dormir, isolantes térmicos, cadeiras, mesas e artefatos de iluminação. Dependendo da modalidade e lugar escolhido, essa lista pode se avolumar com eletrodomésticos (nos campings que têm estrutura para tal) ou incluir comida e dispositivos de segurança (caso se acampe “no mato”, quando, inclusive, pode-se ter que carregar tudo nas costas até chegar ao destino). E, claro, como em toda viagem/lar, roupas.

Depois de preparar e transportar tudo, ainda há o se instalar, o que compreende escolher a melhor localização dentro do camping: aquela onde o chão seja mais macio e esteja menos inclinado, onde os vizinhos estejam a uma certa distância, o sol numa tal incidência, os banheiros e tanques de lavar não muito longe. Em seguida, erguer o acampamento, começando pelo principal, que é montar a barraca. Hoje em dia isso está cada vez mais fácil, mas nunca se sabe se as estacas entrarão com facilidade no solo ou se o dia estará com chuva ou vento. Um acampamento bem montado é a garantia de uma certa tranquilidade nos dias que estão por vir; portanto, trata-se de momento que requer máxima atenção.

Essa foi, durante anos, a rotina de férias na “casa dos meus pais”. Dessa forma, conhecemos uma boa parte do litoral brasileiro, onde havia campings do Camping Clube do Brasil, do qual éramos sócios. Não sei se esse clube ainda existe, tomara que sim. Nas suas entradas/recepções sempre havia uma espécie de totem – que era, na verdade, a caixa d’água, cilíndrica – a nos receber e a nos indicar que tínhamos, finalmente, chegado, que estávamos em casa. Era um padrão, garantido, de regras, de limpeza e de segurança; daí pra frente, era por nossa conta, o que incluía desfrutar das praias – e demais atrações locais – que, na maioria dos casos, ficavam logo depois da cerca delimitadora da propriedade. E socializar, em maior ou menor grau, conforme a propensão de cada um – a minha sendo sempre um pouco acima da dos meus irmãos e do meu pai, porém não da minha mãe.

Na adolescência, de quantos acampamentos não participei com amigos, nas proximidades de cachoeiras? Em Brasília mesmo havia um camping estatal que abrigava com frequência a mim e minha namorada à época, na impossibilidade momentânea de pagar um motel. Quando me tornei adulto, ainda segui sendo sócio do CCB e acampando, já não tanto pelo Brasil e seu extenso litoral, mas no Centro-Oeste. Minha primeira viagem à Europa, num verão, foi de barraca: Paris, Londres, Bélgica, Alemanha, norte da Itália. Isso já tem um tempo. De lá pra cá, nunca mais, vá lá saber o motivo (ch-ch-ch-changes, como diria Bowie).

Essa minha experiência mais recente, na Chapada do Veadeiros foi muito feliz. O camping que escolhi, Pacha Mama, possui todas as condições de excelência para um camping, inclusive o de se situar num local privilegiado, fronteiriço ao Parque Nacional dessa chapada e defronte ao majestoso Morro da Baleia; e debaixo de um céu fortemente estrelado. Possui uma cozinha completa à disposição daquele que, como eu na ocasião, não tenha levado todo o equipamento – um dos dias fiz um sensacional macarrão, na companhia de uma turma de São Paulo, divertidíssima, cuja “cozinheira”, lá pelas tantas, morta de curiosidade, me pediu uma “prova” da minha criação.

Refletindo agora sobre as peculiaridades do costume de acampar me vem à cabeça o grupo de leitura de romances do qual (ainda) participo. Nos reuníamos numa periodicidade mensal na casa de uma amiga querida que, lamentavelmente, faleceu há cerca de um ano. Sua filha, amiga também, que participava do grupo, continuou a fazer os encontros, no mesmo apartamento, que herdou da mãe. E o fato de eu usar o verbo (reunir-se) no passado reside em que, se já havia me afastado (mas por outros motivos, em grande parte aceitos) desse grupo antes da morte de Cléa, agora acabo me afastando por uma espécie de nostalgia em relação ao que ela, com a sua personalidade única, imprimia a cada encontro.

Explico: havia um ritual, que ela alimentava. Primeiro, o convite, a lembrança de que o encontro seria tal dia. A expectativa de quem iria (ou “viria”). Depois, a festa, a discussão, onde cada um – depois do indefectível cálice de vinho do porto – expressava seus espantos: não havia quem se espantasse mais do que ela; com o que havia lido, com a leitura que os outros haviam feito. Em seguida, os quitutes, o café (às onze da noite), os detalhamentos de livros lidos e a eleição do livro seguinte. Ela anotando tudo, fã confessa que era de listas. Por último, por volta de uma semana depois do encontro, lá vinha o seu relato, que servia tanto para que os que não tinham ido pudessem saber do acontecido, quanto para que os que tinham reavivassem na memória os momentos, sempre deliciosos, vividos conjuntamente. Mas acima de tudo, servia para morrer de rir, pois ela era dona de uma pena cômica, juvenil, generosa.

Tendo ela partido, o grupo persiste a realizar os encontros. Esses costumam ser bons, mas parece que essa disciplina que ela impunha – e que ninguém se sentiu (ou seria) capaz de imprimir – faz falta; ao menos, a mim, faz. É como se estivéssemos, a cada ocasião, apesar de seguir efetuando as mesmas etapas do “roteiro” estabelecido, ainda não libertos da nossa natural errância. Cléa – e suas saudáveis, amorosas obsessões – era alguém que nos retirava, momentaneamente, dessa condição. O hábito de acampar, penso hoje, é algo que se aproxima disso: faz, com a série de (doces) obrigações que nos impõe, que reformulemos, ainda que por um período curto, o conjunto de nossas errâncias, as circunstâncias todas que nos levaram a viver como vivemos, onde vivemos, por quê vivemos.

Cabe um último adendo, conforme o prometido, sobre a questão do conforto. É comum, entre campistas, o relato sobre aquela namorada ou cônjuge (ou namorado, por que não) que só aceita acampar se tiver um colchão entre si e o chão. Algo que complica bastante, pois o tal colchão haverá de ser inflável (e alguém terá que inflá-lo, de algum modo) ou então será aquele item de difícil, quase impossível, transporte. Uma tremenda bobagem, já que os sacos de dormir, aliados a mantas isolantes, garantem todo o conforto, tanto térmico quanto ergonômico, de que se precisa. Acampar engloba toda uma tecnologia, fruto de pesquisa, que só se aprimora. As barracas são hoje desenhadas para se moldarem ao vento, ao invés de lhe operarem resistência. Seus tecidos, para suportarem cada vez mais colunas d’água. Há todo um empenho, por parte da indústria de materiais de camping, para que você esteja – e, consequentemente, se sinta – confortável. Na minha vivência pessoal, garanto que, passada a primeira noite – de natural ou eventual estranhamento, do corpo, da cabeça –, as noites em barraca são celestiais.

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A propósito da condenação de Lula

NOSSO WONKA

Muito se reclama dos tempos que vivemos no Brasil atual. Um conjunto de circunstâncias tem feito com que tenhamos nos desentendido com gente, amigos, com os quais costumávamos concordar quando o assunto adentrava a política. Circunstâncias, cabe notar, fortes; dessas que quase não poderiam ser chamadas assim, tal o seu caráter extraordinário: a Operação Lava-Jato, que já pôs na cadeia diversos agentes de um esquema de corrupção interpartidário e de longo prazo, com participação das mais altas autoridades; e o advento de redes sociais que passaram a permitir a expressão cotidiana de nossas preferências.

Operação Lava-Jato: está aí algo nada simples e cuja dimensão histórica será entendida, creio eu, somente num futuro distante. Trata-se de uma investigação que iniciou pela ponta solta de um novelo, que foi sendo puxada, puxada… e ainda continua a sê-lo. Acredita-se, a esta altura, que esteja próxima do fim, e que vá terminar com todos os envolvidos no mega-esquema devidamente presos. A questão é que acabará por não sobrar ninguém, já que a política em si estava eivada por essas práticas criminosas; e a pergunta que resta é: até que ponto essa circunstância está ligada com o impeachment de Dilma Rousseff, esse terceiro componente no caldo das desavenças – talvez aquele cuja presença/sabor acabe por ser predominante.

Rousseff não foi deposta em função de crime que tenha cometido no âmbito da Lava-Jato. Foi deposta por dois crimes que dizem respeito à administração das finanças públicas. Praticou atos expressamente proibidos por leis que balizam as ações de governantes para que as finanças do Estado sejam respeitadas levando em conta que 1) uma mesma quantia de recursos não pode, subitamente, se multiplicar por dois (se ela sofre uma nova alocação, isso significa que não mais permanece onde estava) e 2) essas mudanças de alocação, em sua grande maioria – e foi esse o caso –, precisam de aprovação do Poder Legislativo, não podem decorrer unicamente da determinação do governante.

Claro: houve esperneio na intepretação de ambos os crimes: outros já fizeram igual; o atingimento da meta fiscal (critério na decisão sobre necessidade ou não de autorização por parte do Legislativo) possui prazo mais amplo do que aquele que sustenta a existência de relatórios periódicos de acompanhamento! Mas também houve a devida explicação: a sistematicidade da infringência; o propósito em si do acompanhamento periódico. Tudo às claras, diante dos nossos olhos-ouvidos-neurônios; somente a prevalência de uma paixão a impedir a fria constatação.

Mas, também, é claro que tudo o que até então tinha vindo à tona na Lava-Jato contribuiu para que o julgamento de Rousseff – um julgamento essencialmente político – tivesse o desfecho que teve. Não é à toa que os protagonistas dessa operação, Moro, Dallagnol, Janot e cia., desde cedo entraram na conta de “golpistas” por parte daqueles que saíram inconformados do processo de impeachment.

O tempo está cuidando de lançar uma sombra de dúvida sobre essa acusação na medida em que a Lava-Jato passou a seguir, igualmente, as pistas deixadas pela turma acusada – essa talvez com um pouco mais de justiça (mas, ainda assim, volte-se ao dito acima sobre o processo de impeachment) –, em primeira mão, de “golpista”: os políticos e operadores do PMDB, a entourage de Temer e, por último, o próprio. Novamente, temos o caso, nessa insistência em ter a Lava-Jato como algo ruim, dessa espécie de cegueira impedindo que se enxergue o óbvio (que a Justiça está simplesmente fazendo o seu papel): paixão.

Está na hora de dar o nome desse pelo qual tantos têm sacrificado suas respectivas faculdades lógicas: Lula. E de dar-se conta de que esse nome engloba muito mais do que esse ex-operário que chegou a presidente – e que acaba de ser condenado em primeira instância por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Trata-se de uma fábrica, um tanto parecida com a de Willy Wonka (e sua Fantástica Fábrica de Chocolate). Daí o nome lulo-petismo. O que é o lulo-petismo? Fruto do trabalho de diversos operários, não seria uma espécie de chocolate, uma substância que tende a enlouquecer-nos, a nos tirar o juízo?

Iniciei este artigo apontando para as agruras políticas e existenciais dos dias atuais. Amigos se distanciando: sempre um mau sinal; nossos representantes, eleitos por nós mesmos (diga-se de passagem), sendo pegos, um atrás do outro, com a boca na botija. Contudo, creio que essas mesmas circunstâncias que parecem nos condenar, são as que nos colocam em posição ímpar de pôr o país em bons trilhos.

A percepção de que a Justiça pode, sim, funcionar, ter eficácia, é um primeiro passo. Que todo e qualquer agente público que tenha cometido o crime de corrupção, ou venha a cometê-lo, será punido. Em seguida, que, os recursos públicos sendo finitos, opções devem ser feitas. E feitas de forma racional, não com base em fantasias. Temos um forte arcabouço legal a sustentar um controle estrito das contas públicas. A alocação de recursos pode e deve obedecer a princípios que atendam – sempre conforme as circunstâncias da economia mundial – tanto a uma evidentemente necessária redistribuição da riqueza quanto ao seu crescimento conjunto.

Bastante se fala de que o Brasil teria uma defasagem em relação a países vizinhos onde os cidadãos seriam mais politizados. Eu pude constatar algo do gênero há cerca de trinta anos quando fiz parte de um grupo de estudantes de antropologia da UnB que, numa viagem de estudos, visitou a Argentina. Nossos anfitriões, estudantes da UBA, nos davam “banho” nesse “quesito”: destrinchavam a história do seu país no último século e meio com uma facilidade que nenhum de nós nem de longe possuía relativamente à história do Brasil. Cabe, contudo, uma pergunta sobre o que deva exatamente ser entendido pelo termo “politizado”. Corresponderia ele, por um acaso, a uma ordem mais elevada daquilo que, enquanto estudantes, buscávamos: o conhecimento?

Hoje, em retrospecto, fica para mim evidente, nesse episódio, que essa demonstração de maior “conhecimento” não era nada mais do que o resultado de uma leitura politicamente contaminada. Era fruto dessa palavra que eu detesto, mas que talvez torne mais fácil a compreensão: ideologia. A politização necessariamente tem que estar vinculada a uma ideologia? Não pode ela, pelo contrário, estar atrelada à razão sendo aplicada às questões que dizem respeito às coletividades? Por que diabos política tem que ser sinônimo de paixão?

O chocante é que a Argentina de 30 anos atrás não deve ser muito diferente da Argentina dos dias atuais. Ela patina como nação – e tende a continuar a fazê-lo. Por outro lado, a hiperideologizada Venezuela mergulha num caos de dar dó. Vale a pena insistir nesse entendimento da “importância” de ser “politicamente capacitado”? Precisamos, verdadeiramente, de chocolate em nossas vidas?

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Poesia Sem Fim, de Alejandro Jodorowsky

A ARTE DE FUGIR DA GRANDILOQUÊNCIA SEM SE APEQUENAR

Fui assistir ao filme Poesia sem fim do chileno Alejandro Jodorowsky com uma expectativa múltipla. Primeiro, por se tratar de um cineasta conterrâneo meu e de alguém que ganhou fama internacional enquanto – mais do que propriamente cineasta – pensador, intérprete do presente. Segundo, pelo fato do filme ser autobiográfico: apesar de Jodorowsky, hoje com 88 anos, viver na França desde os anos 1950, parecia-me (e nisso não me enganei) que o filme giraria em torno de suas origens nesse país que deixei ainda criança, mas que, por certo, me define em muitos aspectos. Por último, o título do filme, a poesia, algo que na minha vida tem adquirido importância enquanto projeto de vida.

Aliado a tudo isso, estava dada a chance de começar a saldar uma dívida para com esse artista/pensador. Tenho amigos aqui no Brasil que acompanham sua trajetória e, por vezes, se surpreendem ao constatar a minha quase completa ignorância a seu respeito. Não sei nada sobre seus filmes anteriores. Idem sobre seus livros. Somente havia tido contato, aqui e ali, com algumas de suas visões através de entrevistas ou artigos de jornal. Sua crença no poder da arte, da criação, era algo em torno do qual pactuávamos, porém sem adesões maiores de minha parte.

Hoje, depois de ter visto Poesia sem fim, sinto-me mais próximo desse ser. Creio que a palavra seja essa mesmo: lá pelas tantas, ele a usa.

Um ser que, de fato, se realizou. Se há um paralelo, creio eu, na proposta dessa cineautobiografia, esse reside no último, quase póstumo, filme de Hector Babenco, Meu amigo hindu. Vidas consistem de algo de extrema delicadeza; basicamente, como já foi dito por Vinicius de Moraes, elas são feitas de encontros. Babenco contou a sua história a partir do encontro com um garoto hindu que ele conheceu numa clínica norte-americana onde ambos batalhavam contra o câncer. Alguém que já filmou com Jack Nicholson e Meryl Streep e teve, digamos, Hollywood ao seu dispor, bem que poderia ter abordado tudo isso na hora de contar a sua história; porém, eis que resolve se pautar, nisso, por esse outro “colega”, numa procura evidente do seu ser, talhado por uma certa solidão.

Jodorowsky é tão artista e tão inteligente quanto Babenco. Meu amigo hindu, ao contrário de Poesia sem fim, se passa no país que esse cineasta de origem argentina escolheu como destino, o Brasil, e narra algumas das peripécias de sua vida adulta. Sua vida na Argentina não entra, assim como não entram, diretamente, as escolhas que o conduziram a se tornar cineasta – é somente na convivência com o amigo hindu onde isso se revela, meio en passant. Já Jodorowsky escolheu justamente esses momentos (troque-se somente o termo cineasta pelo termo poeta). Uma escolha, quem sabe, menos complicada; mas, também, com chances de cair numa grandiloquência a respeito de si mesmo.

A poesia no Chile é algo que se assemelha às águas termais que jorram do seu solo, às vezes com a força dos gêiseres. Filmes recentes sobre Pablo Neruda têm jogado luz sobre esse caso luminar, ao mesmo tempo em que o fazem no tocante às perseguições que ele enfrentou devido a suas posições políticas. Neruda e a política, conforme vemos em Poesia…, não foram referências para Jodorowsky. Sim, ele deixa o Chile em função da ascensão de um caudilho, mas não só: seu ídolo local, o poeta Nicanor Parra, lhe sintetiza, a certa altura, a realidade da profissão nesse país. Como se não bastasse todo o preconceito familiar e social que teve que enfrentar ao optar pela poesia, não ter meios de sobreviver economicamente seria mais um obstáculo.

Encontros, disse eu acima, são o que tecem o delicado tecido de uma vida. Saber identifica-los enquanto os verdadeiros elementos na composição de um ser, eis o desafio para cineastas que resolvem contar trechos – os mais significativos – de suas vidas. Ocorreu a Jodorowsky de não se encontrar – por não querer, diga-se – com alguém como Neruda nesse pequeno país em que todos se esbarram com todos; mas sim com uma trupe de “malucos” que o acolheram e que foram por ele acolhidos.

Jodorowsky, assim como Babenco, galgou os degraus da fama, se estabeleceu – e “venceu” – enquanto poeta/artista. Porém, o maior indicativo de seu sucesso, a meu ver, reside nesse reconhecimento dos elementos os mais singelos que, ao longo da vida, lhe proporcionaram a chance de ser alguém absolutamente único, singular. Os retratos que faz desses personagens – e que se pode achar carregados em demasia nas tintas (a mãe que só fala cantando liricamente, a amiga bailarina que só anda na ponta dos pés, a carnuda poeta amante que engole litros de cerveja, os anões sofredores, o companheiro poeta, Enrique Lihn, que escreve até no assoalho do quarto) – são tão vitais para aquilo que ele quis transmitir a respeito de si quanto a procedência (e idade) longínqua do amigo de Babenco no relato que esse fez de si mesmo.

Sói que se tenha a respeito de Jodorowsky a desconfiança que se tem em relação a tudo o que se distancia do laboratório e da sua extensão, a clínica. Ao tarô, por exemplo, que ele usa e defende publicamente enquanto auxílio da alma e forma de conhecimento. Já li quem criticasse esse seu último filme acusando a sua estética de ser “melancólica, anacrônica e incompreensível”[1] e o seu pensamento de beirar a impostura. Sugiro a esse pessoal que reveja o filme sob a ótica de que a poesia pode ser definida como uma ciência que, por meio da palavra, atua na alma e na sua fatal errância em meio à vida. Há coerência, pois, entre ela e o tarô; e confluência de ambos com o decisionismo individual que um Paul Veyne enxergava como sendo o grande aporte de Foucault ao pensamento atual. Se um é charlatão, o outro o seria tanto quanto.

[1] Eduardo Escorel na piauí digital.

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